Maria Fernanda Elias Maglio - Quem tá vivo levanta a mão

Literatura brasileira contemporânea
Maria Fernanda Elias Maglio - Quem tá vivo levanta a mão - Editora Patuá - 230 Páginas - Ilustração, projeto gráfico e diagramação: Leonardo Mathias - Lançamento: 2021.

Maria Fernanda Elias Maglio, vencedora do Prêmio Jabuti de 2018, consolida a sua importância na literatura brasileira contemporânea com esta mais recente antologia de contos, na qual surpreende pelo domínio de uma variedade de técnicas narrativas. É impossível para o leitor ficar indiferente à brutalidade dos temas e protagonistas que, em sua maioria, desnudam a decadência da raça humana, ainda que não sejam humanos em alguns casos. De fato, a autora nos faz perceber com este livro a dificuldade de preservar algum traço de humanidade nas situações de violência e desigualdade social que vivenciamos nos grandes centros urbanos.

Por exemplo, no conto nomeado simplesmente como 636, a narrativa é conduzida por uma cadeira elétrica que, em ritmo de bate-papo com o leitor, vai relembrando passagens de sua longa carreira: "Eu tenho mil cento e cinquenta e sete mortes. Meu assento cheira a merda, vômito e urina. No minuto final, meu amigo, no instante em que a corrente elétrica já torrou os miolos, espirrou os olhos para fora, todos cagam, vomitam e mijam. Abrem os buracos, destapam tudo. Fica mais fácil de o capeta entrar. Eu facilito o trabalho, arrombo as entradas. Isso aí: sou um arrombador." Um início matador, no estilo de Rubem Fonseca não é mesmo? 

"As coisas que eles pensam naquele segundo final, você nem ia acreditar, o cérebro desses caras é pura merda. A maioria pensa em comida, juro. É claro que antes disso surge a imagem da mãe, da avó, vez em quando algum filho, pai não tem, porque essa gente nunca tem pai. Mas naquele instante próximo do fim, quando já embostearam meu assento, os desgraçados pensam em comida. Já vi frango frito, pernil assado, pizza de calabresa, torta de banana, chocolate, figo. Você ainda pergunta como vejo as memórias? Estou dentro deles, encharcando o cérebro de corrente elétrica. Nessa hora, eu sou eles: o choque, a memória, a comida, a merda, o olho pulando do buraco, a sopa eletrificada do cérebro, o coração explodindo, o sangue. É aí que eu vejo a desgraça que fizeram. A faca enterrada na barriga da mulher loira, a criança arrebentada, o gozo doente deles, a cabeça da mãe aberta pelos golpes da marreta, do taco de beisebol, do martelo, sempre a mãe, sempre a cabeça, o que varia é o objeto que parte o crânio." - Trecho do conto 636 (p. 44)

Já em 02/10/92, o título é uma referência à data em que ocorreu o Massacre do Carandiru, quando uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo, para conter uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, causou a morte de 111 detentos. Todo o evento é testemunhado apenas pelas baratas do presídio: "Agora estão todos nus, as mãos atrás do pescoço, as cabeças abaixadas, o sangue pintando os corpos, ainda que não estejam feridos. Tatuagens, costelas e pênis. Todos têm pênis e medo de morrer. As botas não, porque as botas estão protegidas por fardas e fuzis e revólveres, e todos têm pênis guardados nas calças."

Também há lugar para algumas passagens bem-humoradas, como as lembranças do solitário idoso, esquecido pela família, no conto de longo título: Era como se todo mundo tivesse morrido, não só a galinha dura no meio do pátio. Em um diálogo – que na verdade é só um monólogo – com o enfermeiro ele relembra, com bastante dificuldade, um acontecimento do seu passado. Entre preconceitos e digressões a história avança lentamente em um ótimo exercício narrativo da autora, enquanto o leitor se questiona sobre o que é delírio e realidade.

"Você deve ter ouvido muita coisa, hein, nesse negócio de enfermeiro de velho. Porque velho ou tá caduco ou falando só verdades. Você devia escrever um livro, Matheus, devia mesmo. Hein? Ah, você é o Carmo, Matheus é o enfermeiro da noite. Que dia é hoje, sábado? Tinha certeza que era sábado. Puta que pariu, quinta-feira, não tem nada mais triste do que quinta-feira, meu amigo, porque o final de semana ainda não chegou e a gente quer ficar alegre. Sexta era um dia bom, sábado, domingo eu almoçava na Beth, os meninos correndo aquele gramadão. Você não conheceu a Beth, minha irmã mais velha; casou com um ricaço, casa no Morumbi, dessas com bosque, piscina coberta, sauna; a quadra de tênis era quase do tamanho do apartamento em que morei depois que meus filhos saíram de casa. Estou aqui há o quê, dois, três anos, nem sei mais, porque todo dia abro o olho e sei que vai ter um de vocês limpando minha bunda. Não cansa, Matheus, hein, passar o dia limpando cu de velho? Agora é o quê, uma e meia? Nossa, três e cinco, o tempo passa, e a gente só morrendo devagar, deixa eu falar logo, porque depois das três e meia, te falei pra não acreditar no que digo depois das três e meia?" - Trecho do conto Era como se todo mundo tivesse morrido, não só a galinha dura no meio do pátio (p. 79)

Em Praça do Patriarca há até mesmo espaço para uma improvável história de amor entre Ana Ester, "moça direita e séria", balconista no boticário da Brás Leme e Osmar, que está para sair da prisão: "[...] não vou te esconder nada, estou cumprindo minha dívida com a sociedade, cometi o artigo 157 (depois a Rita explicou direitinho o que era o artigo 157) e dizia pra ela responder e mandar uma foto bem bonita, assim de corpo inteiro e se ela qisesse, poderia fazer a carteirinha pra visitar, era só ver os documentos direitinho e terminava com um beijo, minha linda e, deus do céu, achou que nunca mais fosse conseguir dormir de tantas cócegas."

"Foram dois meses e oito cartas, quatro dela e quatro dele. Na penúltima, ele dizia que dia 29 ia sair de alvará de soltura, e ela achou uma palavra linda: alvaradesoltura. Ele continuava a carta perguntando se se ela aceitaria se encontrar com ele, tomar um suco, comer um salgado, um lanche, e terminava com, do sempre seu, Osmar. Ela respondeu no mesmo dia, de caneta azul mesmo, porque a roxa tinha acabado a carga, que sim, que aceitava; queria escrever que não via a hora de eles se encontrarem e assinar com, da toda sua, Ana Ester, mas era moça direita, orfã, atendente do boticário da Brás Leme, então assinou só Ana Ester, com um coração flechado. Então ele mandou outra, bem curta, três linhas, dizendo: 4 de setembro, meio-dia, praça do Patriarca, vou estar com blusa preta do Ramones, calça, jeans e boné; me escreve falando se você aceita e com que roupa vai estar, daí ela respondeu que sim e a blusa rosa, a saia jeans, a tiara turquesa." - Trecho do conto Praça do patriarca (p. 113)

Literatura brasileira contemporânea

Sobre a autora: Maria Fernanda Elias Maglio nasceu em Cajuru-SP, em agosto de 1980. É escritora e defensora pública, trabalha fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Seu primeiro livro, “Enfim, imperatriz” (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria contos. Publicou também o livro de poesias “179. Resistência” (Patuá, 2019), vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional de 2020.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Quem tá vivo levanta a mão de Maria Fernanda Elias Maglio

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