Gilberto Gil - Todas as letras

Poesia brasileira contemporânea
Gilberto Gil - Todas as letras - Editora Companhia das Letras - 520 Páginas - Organização de Carlos Rennó - Capa e projeto gráfico de Raul Loureiro - Lançamento: 2022.

Lançado originalmente em 1996, Todas as letras de Gilberto Gil ganha uma nova, revisada e bem-cuidada edição como parte das comemorações pelos oitenta anos do cantor e compositor, reunindo mais de quatrocentas letras apresentadas com base em períodos específicos de sua carreira: primeiras canções (1962-66); fase do tropicalismo (1967-69); canções no exílio e retorno (1970-74); refazenda, refavela e refestança (1975-78); realce e período pop (1979-83); produção dos anos oitenta (1984-89); a década de 90; letras dos anos 2000 até o período atual.

O livro conta com a organização de Carlos Rennó, ilustrações inéditas de Alberto Pitta e textos de Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik, além de fotos, cronologia biográfica, índice de álbuns e canções. O próprio Gil comenta as letras, em textos que são o resultado de conversas do compositor com Carlos Rennó. Todas as letras agrupa também composições inéditas, recuperadas graças à memória do artista ou levantadas em fontes como seus cadernos de versos, arquivos particulares, registros de shows antigos e acervos de editoras e gravadoras.

Sobre "Super-Homem – A canção", Gil explica: "Muita gente confundia essa música como apologia à homossexualidade, e ela é o contrário. O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião – me interessava revelar esse imbricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano. Eu tinha feito 'Pai e mãe' antes, já abordara a questão, mais explicitamente da posição de ver o filho como o resultado do pai e da mãe. Em 'Super-Homem – A canção', a ideia central é a de que pai é mãe, ou seja, todo homem é mulher (e toda mulher é homem)."

Sobre "Se eu quiser falar com Deus": "'O Roberto me pediu uma canção; do que eu vou falar? Ele é tão religioso – e se eu quiser falar de Deus? E se eu quiser falar de falar com Deus?' Com esses pensamentos e inquirições feitos durante uma sesta, dei início a uma exaustiva enumeração: 'Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro'. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes. O que chegou a mim como tendo sido a reação dele, Roberto Carlos, foi que ele disse que aquela não era a ideia de Deus que ele tem. 'O Deus desconhecido'. Ali, a configuração não é a de um Deus nítido, com um perfil claro, definido. A canção (mais filosofal, nesse sentido, do que religiosa) não é necessariamente sobre um Deus, mas sobre a realidade última; o vazio de Deus: o vazio-Deus."

Sobre "Drão": "Sua criação apresentou altos graus de dificuldade porque ela lidava com um assunto denso – o amor e o desamor, o rompimento, o final de um casamento; porque era uma canção para Sandra [apelidada Drão – daí o título da música] e para mim. 'Como é que eu vou passar tanta coisa numa canção só?', eu me perguntava. Além disso, havia a exigência de excelência, de que o versar tivesse capricho. Então demorou dias e dias de trabalho. Eu me lembro de estar sentado no chão, anotando frases no caderno, com o violão do lado, e de repente sentir o sufoco do coágulo da criação, e ao mesmo tempo a iminência da explosão da via criativa, e não aguentar, saindo dali e indo para o quarto me deitar e deixar, então, aquele coágulo se dissolver, criando filetes que se encaminhavam para aqui e pra ali... Aí o cérebro e o coração intumesciam, algumas ideias fluíam, e dois, três ou quatro versos saíam. [...]"

Super-Homem – A canção

Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter

Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguadara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver

Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser

Quem sabe
O Super-Homem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher

Se eu quiser falar com Deus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

Drão

Drão
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar nalgum lugar
Ressuscitar no chão
Nossa semeadura
Quem poderá fazer 
Aquele amor morrer!
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela estrada escura

Drão
Não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Estende-se, infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura
Quem poderá fazer 
Aquele amor morrer!
Nossa caminha dura
Cama de tatame
Pela vida afora

Drão
Os meninos são todos sãos
Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há
De haver mais compaixão
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Se o amor é como um grão!
Morrenasce, trigo
Vivemorre, pão

Drão

Sobre os autores: Carlos Rennó é letrista, produtor artístico e jornalista. Entre as suas letras estão "Escrito nas estrelas", "Todas elas juntas num só ser" e "Façamos". É autor de Canções (Perspectiva, 2018), O voo das palavras cantadas (Dash Editoria, 2014), Cole Porter - Canções, Versões (Pauliceia, 1991).

Gilberto Gil é cantor, compositor e multi-instrumentista. Com vasta produção fonográfica, foi premiado com nove Grammys ao longo de sua trajetória artística. Atuou também na esfera política, como ministro da cultura. Recebeu diversos prêmios e honrarias, sendo nomeado Artista da Paz pela Unesco, em 1999, doutor honoris causa pela Universidade de Berklee e imortal pela Academia Brasileira de Letras (ABL).

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Todas as letras de Gilberto Gil

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