Caetano Veloso - Letras

Poesia brasileira contemporânea
Caetano Veloso - Letras - Editora Companhia das Letras - 512 Páginas - Organização de Eucanaã Ferraz - Capa e projeto gráfico: Raul Loureiro - Obra de capa: Gambiarra Amarela, de Emmanuel Nassar - Lançamento: 2022.

Com organização do poeta Eucanaã Ferraz, o livro reúne todas as 390 canções compostas por Caetano Veloso ao longo de quase sessenta anos de carreira em uma disposição cronológica inversa, ou seja, das criações mais recentes até as mais antigas. Complementam ainda esta edição um índice alfabético das canções, bibliografia sobre o artista e discografia completa, faixa a faixa, com mais de trinta álbuns de estúdio e gravações ao vivo. O lançamento consolida a longa carreira do polêmico músico, produtor, arranjador e escritor no ano em que o mesmo se torna octogenário e ajuda a entender a nossa identidade social e cultural como país.

O debate sobre a propriedade de se considerar letras de canções como poesia, a partir do questionamento de romancistas, poetas ou simplesmente puristas da literatura tradicional, já foi esgotado depois do prêmio Nobel de Literatura para Bob Dylan em 2016, prêmio Príncipe de Astúrias para Leonard Cohen em 2011 e prêmio Camões para Chico Buarque em 2019. No entanto, se ainda resta alguma dúvida sobre a consistência literária das letras de Caetano Veloso, basta lermos o verdadeiro poema metrificado que é Cajuína, destacado ao final desta postagem ou as considerações  abaixo, trecho da introdução do poeta Eucanaã Ferraz.

"No papel, as palavras reivindicam uma atenção nova. Ainda que as melodias soem na memória, vem aos olhos a materialidade dos versos, das estrofes e dos procedimentos formais. Então, reconhecemos o trabalho com o mínimo, com as qualidades sonoro-silábicas, o eco, a repetição, delicadíssimos ritmos sintáticos a que se contrapõem cortes bruscos e a eloquência narrativa de versos longos e discursivos. A música não está apenas na melodia da canção, pois há toda uma exploração dos valores musicais das próprias palavras. Também podemos desfrutar melhor de certos valores visuais, da exploração de coincidências, da fusão e da fragmentação de estruturas que vão da sílaba à estrofe. A espontaneidade da fala contrasta com blocos regulares de versos metrificados, com passagens herméticas, citações, jogos de linguagem, extravagâncias barrocas e subversões de diferentes naturezas." (p. 15) - Introdução do organizador Eucanaã Ferraz

É certo que cada um guarda as canções preferidas de Caetano Veloso de acordo com o seu próprio imaginário e memórias afetivas. No meu caso, confesso que tive alguma dificuldade em selecionar somente três exemplos, tão farto é o material disponível. Da crítica social em Haiti, passando pelo lirismo de Você é linda até a poesia de Cajuína, as letras apresentam em comum um estilo que não encontra semelhança em outros compositores de qualquer época.

Haiti

Quando você for convidado pra subir no adro
Da Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só para mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos, pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos 
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada 
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

E na TV se você vir um deputado
Em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
Sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina: 111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando você for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

Você é linda

Fonte de mel
Nuns olhos de gueixa
Kabuki máscara
Choque entre o azul
E o cacho de acácias
Luz das acácias
Você é mãe do sol

A sua coisa é toda tão certa
Beleza esperta 
Você medeixa a rua deserta
Quando atravessa 
E não olha pra trás

Linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz

Você é linda
Mais que demais
Você é linda, sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim

Você é forte
Dentes e músculos
Peitos e lábios
Você é forte
Letras e músicas
Todas as músicas
Que ainda hei de ouvir

No Abaeté, areais e estrelas
Não são mais belas
Do que você
Mulher das estrelas
Mina de estrelas
Diga o que você quer

Você é linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz

Você é linda
Mais que demais
Você é linda, sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim

Gosto de ver
Você no seu ritmo
Dona do carnaval
Gosto de ter
Sentir seu estilo
Ir no seu íntimo
Nunca me faça mal

Linda
Mais que demais
Você é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim

Você é linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer 
E diz

Cajuína

Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina

Poesia brasileira ocntemporânea
Sobre o organizador: Eucanaã Ferraz nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de, entre diversos livros, Sentimental (2013), vencedor do prêmio Portugal Telecom, Escuta (2015) e Retratos com erro (2019) todos pela Companhia das Letras. Também publicou livros para crianças, como Palhaço, macaco, passarinho (2010, prêmio Ofélia Fontes, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – Melhor Livro para Criança) e Cada coisa (2016, Melhor Livro de Poesia e de Melhor Projeto Editorial, também pela FNLIJ). É um dos principais poetas brasileiros em atividade.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Caetano Veloso - Letras

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