Valéria Macedo - A falta que ela faz
Valéria Macedo utiliza em seu romance de estreia uma linguagem simples e direta para abordar temas complexos do universo feminino contemporâneo, principalmente os dilemas e ambiguidades entre os papéis de mãe e mulher, que muitas vezes não são coincidentes — por vezes, chegam a se excluir mutuamente. O romance apresenta quatro gerações de mulheres, com foco na narradora não nomeada, que enfrenta os julgamentos e desafios de uma maternidade solo enquanto lida com os crescentes e misteriosos episódios de afastamento de sua filha Alma — em cada evento, alguns preciosos segundos de desaparecimento são roubados de suas vidas em comum.
Os vazios e silêncios da menina parecem antecipar a falta de comunicação e apoio da própria mãe da protagonista, Glória. Nesse cenário de ausências e fragilidades, os traumas de sua criação vêm à tona, e é nas lembranças da avó Aurora — figura de afeto e acolhimento — que a protagonista encontra algum alívio. A autora tenta desmistificar a expectativa imposta pela sociedade às mulheres para se tornarem mães perfeitas, ignorando medos, dúvidas e angústias — sentimentos tão humanos quanto inevitáveis nesta fase de transformações. Na trajetória da protagonista, é o amor pela filha que se revela como a chave para enfrentar a coleção de ausências acumuladas ao longo da vida.
"E, bem em minha frente, ela desaparecia. Não havia avisos ou sinais que pudessem me preparar para perdê-la. Demorei a ver o que meus olhos enxergavam. Confesso que, nas primeiras vezes em que ela se foi, achei ser só distração. Crianças por vezes entram em sintonia total com algo que observam e desligam, quase desaparecem, são praticamente abduzidas pela experiência. Fazem isso às vezes até mesmo com os próprios pensamentos, sabe? Evitar olhar para minha filha não faria com que os eventos não acontecessem. Estando ou não ao seu lado, os episódios se repetiriam. Nada é mais sagrado do que a infância. Alegria e saúde deveriam constar no dicionário como sinônimos para o substantivo criança. Decidi que naquele final de semana nada me tiraria de perto da minha pequena. Eu seria como coruja, planaria no silêncio e caçaria o mal invisível. Nas mãos, o celular com a bateria totalmente carregada. No bolso, um bloquinho de papel e um lápis. Precisava encontrar pistas e anotar em detalhes tudo que acontecesse nas próximas horas." (p. 9)
Desenvolvendo uma prosa poética que se aproxima do estilo envolvente de Aline Bei — marcada pela delicadeza, pela fragmentação e pela intensidade emocional —, o romance se afirma com originalidade e força próprias. Mais do que uma narrativa, revela-se como um gesto de empatia, um convite à escuta e à reavaliação dos papéis que ainda pesam sobre as mulheres. Apesar da curta extensão e da aparente simplicidade do texto, sua potência reverbera muito além da última página, fazendo pensar sobre os valores da identidade feminina.
"Me senti sozinha durante as quarenta semanas de gestação. Gestar lentamente me fez ainda mais introspectiva e mais amiga do cantinho escuro da vida. Preocupações, quilos, inseguranças, angústias, contas, frustrações, fraldas, dores nas costas e sensações de incapacidade cresciam com meu ventre. A barriga crescia, mas era a cabeça que quase explodia. Eu me sentia em um cinematográfico naufrágio solitário. Ainda nem tinha o meu bebê nos braços e a sociedade já me colocava em dívida. Com poucos meses de gravidez, já havia experimentado a vergonha, a menos-valia, o estigma, a negligência social e o abandono. Tudo vindo da imaginação alheia, ao saberem que eu seria mãe solo. Após rastrearem meu dedo, em busca de provas de uma aliança com alguém, me perguntavam: — E o pai?" (p. 43)
Finalista do Prêmio Literário Voz — uma rara e necessária iniciativa voltada a incentivar e reconhecer a produção literária feminina —, A falta que ela faz propõe uma reflexão sincera sobre o sonho impossível de ser uma mãe perfeita. Esse ideal, quase santificado pela cultura ocidental, entra em conflito direto com a mulher real e suas limitações em uma cultura patriarcal: "Não havia dúvida sobre a força do amor que conheci ao me tornar mãe. Eu me doava e oferecia muito mais amor do que um dia recebi, mas eu também era feita de dor. Por mais que me esforçasse em protegê-la da feiura da vida, eu mesma a apresentava à minha filha."
"E ali estava eu, agora adulta e mãe. Mais uma vez, eu não sabia do paradeiro de minha mãe, Eu tinha a mesma idade de Alma quando Glória me abandonou durante oito dias. Me lembro desses oito dias todos os dias da minha vida. Naqueles dias de ausência, minha mãe tatuou na minha pele a grande incerteza: eu valia a pena? Sempre pensei que a maternidade era um anseio comum para todas as mulheres. Descobri, com minha mãe, que isso não era verdade. Ela sempre deixou muito claro que jamais padeceu no paraíso com a minha chegada. Minha avó foi quem me fez sentir amada. Foi ela, também, quem me ensinou a orar. Desde o dia em que aprendi a conversar com Deus, pedi para voltar à noite em que eu e minha mãe nos conhecemos. Renascer nosso parto, nosso começo, para, quem sabe, eu tivesse uma chance de despertar de um amor diferente em minha mãe. Não fui criança que esperneia por um brinquedo novo ou um sonho na padaria. Minha alma birrenta desejava a mãe prometida que conheci em todo filme, passeio no parque e porta de escola" (p. 75)
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar A falta que ela faz de Valéria Macedo
Comentários