Micheliny Verunschk - Caminhando com os mortos

Literatura brasileira contemporânea
Micheliny Verunschk - Caminhando com os mortos - Companhia das Letras - 144 Páginas - Capa: Alceu Chiesorin Nunes - Imagem de capa: Jurema Preta visita Satanás de Stephan Doitschinoff - Lançamento: 2023.

Ao descrever as consequências da intolerância religiosa, Micheliny Verunschk, em seu mais recente romance, me faz refletir sobre o filósofo Baruch de Espinosa (1632-1677), crítico do modelo de religião na qual Deus é um ser colérico ao qual se deve prestar culto para que seja sempre benéfico, originando também intermediários e intérpretes da Sua vontade, capazes de oficiar os cultos, profetizar eventos e invocar milagres. O conceito de Espinosa de um Deus Natureza em oposição ao Deus humanizado das religiões parece ainda mais necessário principalmente em regiões do interior do Brasil, assoladas pela pobreza e ignorância. A população, sem assistência do Estado, torna-se uma presa fácil para pastores inescrupulosos. 

De fato, me ocorre uma citação de outro famoso filósofo, Blaise Pascal (1623-1662), que definiu bem uma das questões deste livro: "Os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo como quando o fazem por convicção religiosa". Esta é a chave que a autora utiliza para demonstrar a violência contra as mulheres e minorias com base no fanatismo religioso. No romance de Micheliny, a jovem Celeste é queimada viva, tal qual uma bruxa na idade média. Lourença e Ismênio, os pais, acreditavam que o ritual iria purificar a filha de seus pecados, nas palavras de Ismênio ao delegado: "Não era pra matar, não, doutor. Não era. O pregador disse que quando se fazia a purificação o Inimigo ia embora, mas a pessoa permanecia. [...]".

"Não foi minha filha que eu matei, não, doutor. O que eu fiz foi outra coisa. Eu não matei. A menina vai se levantar. O senhor vai testemunhar esse milagre da salvação. No terceiro dia. O senhor vai ver, ela vai fazer a sua páscoa e vai voltar pela graça de Deus. Matar Letinha? Matei, não, senhor. Jamais. O verdadeiro crente expulsa o espírito maligno, o senhor sabe o que é isso? O senhor sabe, eu sei que o senhor sabe. O senhor já viu o espírito maligno? Já percebeu como ele age? É esperto, manhoso, ele. Anda pelo mundo espalhando malícia e falsidade. É feio. É torto. É o pai de toda mentira. Mas Deus não quer o pecado." (pp. 19-20) - Depoimento de Lourença

O romance transmite uma atmosfera fantástica devido à prosa forte e poética da autora com características comuns a uma distopia, mas infelizmente reflete a violência diária de um país que cada vez mais evitamos reconhecer. Lourença carrega o trauma da morte acidental da primeira filha, Quitéria, como santa Quitéria de Brácara Augusta, a virgem que, segundo a tradição, após ter a cabeça decepada, a tomou em suas mãos e caminhou até a cidade vizinha onde caiu e foi sepultada. A pequena Quiterinha, ainda neném, teve um destino pior, encontrada desacordada em meio a uma poça de sangue, atacada por uma porca de um morador vizinho.

"O doutor deve saber que na casa de um justo de Cristo reina a ordem, a limpeza e os ensinamentos da santa Bíblia, do profeta e do pai espiritual, que é representado pelo pregador. Quem sou eu pra lhe ensinar isso? O senhor sabe bem. Mas o que quero é mostrar pro senhor que a gente fez tudo certinho. E que assim era lá em casa desde que Lourença se converteu e depois eu e os meninos. Todos os dias, depois da oração da tarde, eu desligava a caixa de luz pra mente não se distrair em pecado. Mas não é todo justo que faz isso, só os mais fervorosos. O pregador contava pra gente dos bons exemplos que ele já havia presenciado pelo mundo. E desde que ele me ajudou a largar o vício que fiz essa promessa, de ser um crente fiel, de valor. Um justo verdadeiro. Foi ele quem me ensinou a falar bem. O senhor viu como sei explicar tudinho? Só que pra Letinha isso não bastava." (pp. 50-51) - Depoimento de Ismênio

A narrativa avança com base nos fragmentos de depoimentos da família e vizinhos, cabendo a responsabilidade de conectar os diferentes pontos de vista desta tragédia anunciada a uma personagem não nomeada, a perita, ela própria que confessa ter mais facilidade em afundar os dedos nas feridas e orifícios dos cadáveres do que lidar com a confusão dos vivos. No entanto, outras cenas de violência local e a morte de um antigo amigo fazem com que ela enfrente uma crise existencial. O seu sentimento confuso de ódio e pena diante da mãe assassina, demonstra bem a dificuldade de separar os vilões das vítimas nesta história, principalmente quando Lourença não resiste à tortura dos interrogatórios e tem uma parada cardiorrespiratória na cela.

"Dos três presos nessa maldita ocorrência, a mulher é quem me inspira sentimentos que eu gostaria de soterrar. Quando alguém muito querido morre, é como se não houvesse mais nenhum lugar seguro no mundo. Onde quer que se esteja, ela, a morte, irá buscar você, esmiuçando pistas e sinais de sua presença no mundo, inquirindo presente, passado e futuro, revirando você nas lembranças dos amigos, farejando sua passagem em lugares de afeto, apreendendo o som da sua voz, os cheiros que você exala, o jeito como o seu corpo se enrosca quando dorme ou transa, os intervalos entre a respiração e a risada, as marcas dos seus dedos em papéis, corpos, alimentos, objetos variados. De posse de absolutamente tudo sobre você, a morte enfim acaba te pegando. E é esse o seu encargo e, por mais que ela demore, você sabe que ela nunca deixa sua missão por terminar. Ou, então, a morte é uma semente que nasce dentro da gente e espera o tempo que for, o momento certo, para germinar." (p. 97) - A perita

Sobre a autoraLiteratura brasileira contemporâneaMicheliny Verunschk nasceu em 1972, em Pernambuco. Escritora e historiadora, é autora de livros de contos, poesias e romances, incluindo Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Patuá, 2014), ganhador do prêmio São Paulo de Literatura, e O som do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021), que conquistou o Jabuti de melhor romance literário em 2022 e o terceiro lugar do prêmio Oceanos.

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Comentários

sonia disse…
Boa tarde, K. Esse livro deve ser forte o bastante a ponto de se poder apostar que mesmo pessoas ignorantes e radicais o leiam, não aprenderão nada com ele. Há casos que não têm cura. A pessoa só acredita no que quer acreditar.
Abraços!
Alexandre Kovacs disse…
Oi Sonia, nunca ouvimos falar de uma guerra provocada por ateus. Segundo o físico americano e prêmio Nobel Steven Weinberg, citado por Richard Dawkins em "Deus, um delírio", "a religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, teríamos gente boa fazendo coisas boas e gente ruim fazendo coisas ruins. Mas, para que gente boa faça coisas ruins, é preciso a religião".

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