Ana Shitara - Hoje

Literatura brasileira contemporânea
Ana Shitara - Hoje - Editora Patuá - 116 Páginas - Capa, projeto gráfico e diagramação: Alessandro Romio - Ilustração de capa: Lucas Emanuel Inglesi - Lançamento: 2025.

Ana Shitara nos apresenta um sensível e original romance de formação, partindo da premissa de que "o agora é passado" e "o passado está em construção". A narrativa explora a maneira como a memória reinterpreta a realidade por meio da escrita, evidenciado pela escolha da autora pela primeira pessoa para narrar os eventos passados da trajetória de Yoji — filho de imigrantes japoneses que se estabeleceram como agricultores no interior do Brasil —, alternando capítulos no tempo presente com o distanciamento da terceira pessoa narrativa. Aos setenta e cinco anos, somente as lembranças de seus erros e acertos parecem conferir algum sentido à existência de Yoji, mas ele logo percebe que o presente ainda reserva surpresas e desafios.

A infância de Yoji transcorre em Tomé-Açu, no interior do Pará, onde, desde cedo, ele aprende a dividir tudo com seu irmão mais novo, Hiroshi, assim como faz com o mais velho, Mamoro. Aos doze anos, embarca para São Paulo com uma "passagem só de ida" para morar na casa dos tios, acompanhado de Mamoro. No novo lar, os irmãos enfrentam inúmeras dificuldades, tornando-se reféns dos maus-tratos do tio, enquanto tentam se adaptar à escola, os novos amigos e ao cotidiano em uma grande cidade. Muitos anos depois ele se recordaria dos conselhos do pai: "Eu tenho que prometer não fazer nada de errado, entender que não adianta discutir com a polícia, com os brancos. A defesa do japonês é o silêncio que evita punição, é a cabeça baixa, a educação."

"O passado está em construção. Minha mãe sai pela porta do casebre de madeira e me chama, movimentando as mãos, segurando em uma delas um balde de zinco. Ela quer me lembrar de que hoje é terça-feira, o dia em que minha tia prometeu nos dar gelo. Não carecia, eu não tinha me esquecido. Estava ansioso e tinha ido me ocupar da roça para tentar acalmar o desejo. Ainda era cedo demais, deviam estar acordando. Minha tia é rica, é que meu tio é um dos diretores da cooperativa. Eles moram a mais ou menos quinze minutos daqui, assim de bicicleta, a pé dá muito mais. Quem é mais importante mora mais longe. Acho que faz uns bons dez dias desde que ela comprou uma geladeira! Meu primo contou que funciona à base de querosene e que a bicha, além de não deixar os alimentos estragarem, faz gelo. Eu não sabia o que era gelo, mas meu primo explicou que era para colocar na água e beber água fresca. Aqui faz uns quarenta graus já de manhãzinha. Aqui é Tomé-Açu, no Pará, Brasil. Procura aí no mapa, fica bem em cima." (p. 12) - Trecho do capítulo 2 - "O gelo vira vento"

Um dos temas centrais do romance é a adaptação do imigrante em um país estrangeiro, destacando especialmente a experiência da comunidade japonesa no Brasil. Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro rompeu relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, Itália e Japão, o que desencadeou um forte sentimento de xenofobia no país. Como consequência, medidas severas foram adotadas, incluindo a proibição de jornais em língua japonesa e até mesmo do uso de rádios nas residências, intensificando o isolamento das famílias de imigrantes. Esse contexto histórico reforça a complexidade do processo de integração da colônia japonesa à sociedade brasileira, que, apesar das adversidades, tornou-se a maior população de origem japonesa fora do Japão.

"O agora é passado. Depois de trancar a porta, Carmen foi desligar a televisão, mas Yoji, voltando devagar à realidade, pediu que deixasse ligada. O canal japonês NHK mostrava uma paisagem da primavera e a voz suave da narradora fornecia dicas de passeios. Ele se deixou ficar na poltrona, olhando aquelas imagens de um país onde nunca vivera, mas do qual se sentia mais parte do que do país onde nascera. Yoji entendia metade do que ouvia, como se sentia metade japonês, mas a identificação era direta e completa com tudo aquilo, pensava que poderia ser ele andando entre aquelas cerejeiras. As músicas japonesas sempre cantavam o sofrimento, cantando a sua alma. Era um sentimento que crescia com a chegada da velhice. Um sentimento cada vez mais estranho, como podia ele se sentir mais parte de um lugar onde estivera uma única vez do que no lugar onde construíra toda a sua existência? As raízes fortes é que sustentavam o tronco e os inúmeros galhos do seu ipê brasileiro, mas ele vivia a velhice e morria como um bambu." (p. 60) - Trecho do capítulo 7 - "Bambu dobra, não quebra"

Apesar de muitos descendentes não falarem o idioma e não conhecerem o país de origem de seus pais e avós, persiste o desejo de visitar o Japão. No entanto, ao fazê-lo, rapidamente percebem um distanciamento cultural difícil de transpor, acompanhado por uma profunda sensação de inadequação e desenraizamento: "O sonho do imigrante do retorno  à terra de origem foi sendo postergado ano pós ano, até o dia em que suas raízes, se espalhando e crescendo no solo brasileiro, se aprofundaram tanto que, ao se emaranharem em outras, acabaram por fincar sua existência aqui e o sonho deixou de existir. Não fazia mais sentido, foi preciso aceitar que não era mais japonês e tampouco brasileiro". Com lirismo e delicadeza, o romance de Ana Shitara explora a universalidade da condição humana e a complexidade das relações familiares, consolidando o nome da autora na literatura nacional.

"É dia de prova de matemática, estamos todos concentrados com os lápis nas mãos, ansiosos para colocar no papel o estudo da noite anterior, loucos para escrever as fórmulas decoradas, antes que todas aquelas informações memorizadas escapem da nossa mente e causem um branco desesperador. Bato com o lápis na mesa esperando receber meu papel. Na sala, só os saltos da professora ecoam, aumentando a tensão. Do meu lado, Vicente José Maria balança a perna sem parar e come as unhas da mão direita. Por um instante temo pela minha vida, acho que ele vai explodir e virar a carteira, levantando-se de supetão, num arroubo de violência e loucura. Porém, como em todo momento de tensão, vejo uma oportunidade. Já havia aprendido a lidar com meu tio e acho que posso fazer o mesmo com Vicente José Maria. Vou trazê-lo para o meu lado, fazer dele meu guarda-costas. Inclino-me na sua direção e sussurro: 'se quiser, posso te ajudar'. Ele parece surpreso, arregala os olhos. Até então, eu havia sempre escondido com o braço o meu papel, tentando colocar uma distância entre nós nos momentos de avaliação. Ele logo meneia a cabeça, consentindo. Completo: 'só não copia tudo, se não a professora vai desconfiar.' O acordo está selado." (pp. 65-6) - Trecho do Capítulo 8 - Garoa de inverno

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Ana Shitara (São Paulo, 1980) é professora de língua e literatura francesa e portuguesa. Autora do livro de contos "Revoada" e do romance "Sob o sol a pino", publicado também pela Editora Patuá, é mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Faz parte do coletivo de Escritoras Asiáticas e Brasileiras, que busca abrir espaços para essas novas vozes na literatura nacional que têm tantas histórias a contar.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Hoje de Ana Shitara

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