Ricardo da Paz - Notas infames na cidade
Os contos de Ricardo da Paz revelam com sensibilidade as desigualdades sociais na periferia de São Paulo nos anos 1990, seguindo a linha de autores como Luiz Ruffato, Marcelino Freire e, mais recentemente, Lilia Guerra. A obra proporciona ao leitor a oportunidade de se surpreender e emocionar diante de personagens invisíveis, mas profundamente reconhecíveis em nosso cotidiano, uma verdadeira legião de excluídos que sobrevivem nas comunidades carentes dos grandes centros urbanos brasileiros, enfrentando preconceito, aversão e, muitas vezes, indiferença, resultante das ações (ou omissões) do Estado e das instituições oficiais no acesso diferenciado aos serviços públicos básicos, tais como: segurança, saúde, educação e justiça.
Já no forte conto de abertura, o narrador-protagonista não nomeado, que identificamos apenas como Raio, descreve a sua trajetória de office boy — da difícil busca por um emprego à rotina de andanças pelo Centro, sempre com a fita dos Racionais MC’s no walkman. Em meio às injustiças diárias, enfrenta episódios de discriminação, como quando é abordado pela polícia na rua Pamplona e confundido com o ladrão do tênis de uma estudante uniformizada, em uma cena marcante que permanecerá em nossa memória, com tristeza: "Comecei a olhar a calçada das ruas, as árvores, os prédios, as pessoas, todas diferentes daquelas de onde vinha. Me senti ameaçado. Tudo era diferente, eles eram diferentes. A revolta foi tomando conta do meu peito."
"A secretária me chama de Raio, porque ela diz que ando rápido igual o The Flash, daquele seriado da TV. Fiquei todo orgulhoso. Não há subida que eu não vença. Não há horário em que não consiga chegar. E, claro, não há entrega que deixo de fazer. / Não foi fácil conseguir esse emprego. Mandei currículo pra tudo quanto foi lugar. Só faltou jogar currículo na privada. E todo canto que me chamava, ia na maior expectativa. Tentava me arrumar todo. Mas sem chance. Não dava em nada. A última vez foi numa papelaria pros lados da Sé. Parecia que tudo tava indo bem, até o dono me fazer a fatídica pergunta sobre onde morava. Tive que falar a verdade, que era na Cohab 2 de Itaquera. O cara na hora desconversou. Perguntou se usaria mais de um passe pra chegar até lá. Precisava de dois e ele sabia disso. E o pior, eu já imaginava o desfecho. Poxa, tanta gente consegue até em banco e não consigo nem em papelaria." (p. 15) - Trecho do conto Raio
A narrativa de Sina — um título muito apropriado, diga-se de passagem — nos coloca novamente na pele de um excluído, dessa vez um filho de migrante de Mossoró, Rio Grande do Norte: "Meu pai não tá mais aqui. Morreu de cirrose, causada por doses diárias de puro desgosto. Eu não. Sou pra frente. Já tou no primeiro ano da faculdade de contabilidade. Espero que este seja meu último trabalho ruim. Por agora preciso dele, não tenho malícia pra roubar e nem disposição pra matar ninguém." O nosso protagonista começa a ter problemas recorrentes com um colega de trabalho, enquanto o conto evolui para um desfecho que é uma espécie de tragédia anunciada.
"Talvez eu não tenha sorte. Mas sair num domingo à noite pra trabalhar, vendo a lua lá fora, doía até os meus ossos. / Lembro que tinha que ir bem na hora que começava o Fantástico. Dureza sair de casa, ver meus camaradas todos na rua, trocando ideia com as minas e ter que ir trabalhar. Não tenho escolha. Saio com a mochila e meu uniforme de peão guardado. Não preciso levar marmita, porque lá tem refeitório. Comida ruim e cheia de salitre. Mas é melhor assim, já guardo essa grana. Cumprimento meus colegas e eles a mim. Vejo um certo ar de sarcasmo por parte deles. Uns já vieram me falar que não adianta estudar e trabalhar, como faço; na vida tudo é esquema. Prefiro não acreditar. De qualquer maneira, não quero ficar nesse sofrimento pra sempre. Não nasci em berço de ouro: sou o mais pobre dos pobres, mas dispenso esse troféu. Quero ser alguém na vida. Orgulhar minha mãe." (p. 26) - Trecho do conto Sina
Um dos contos mais criativos, Homem-placa, tem como base uma atividade que resume o absurdo da falta de oportunidades no mercado de trabalho e que faz com que um homem se sujeite a ser apenas uma placa de anúncios: "Eu neste cantinho de sempre, vejo todo tipo de bagaceira, que já não entra mais na minha cachola dura e cheia de cabelo branco." Afinal, apenas mais uma atividade infame que vemos diariamente nas grandes cidades, enquanto pessoas tentam sobreviver com um mínimo de dignidade: "Só eu sei como essa vida é dura. Sou um velho enfadado e sozinho no mundo e nas ruas. Às vezes, penso que alguém tá olhando pra mim, mas não: quem sou eu pra eles? Um velho baixo e todo estropiado com essa placa de vagas pendurada."
"Hoje é até um dia bom pra mim: aquela segunda-feira friazinha de São Paulo. Quando cheguei, odiava, me arrepiava todo. Depois de tanto tempo até que me acostumei. Larguei tudo lá no Norte pra vim trabalhar aqui. Igual esse monte de gente sonhadora, correndo aqui no Centro de São Paulo. Já corri demais também. Essa cidade grande tem uma agitação danada. Eita povo apressado. Aqui nesse calçadão perto da Praça da Sé, é uma gritaria da peste, fico até com os ouvidos zunindo. Eles capricham no gogó, pro infortúnio desse velho cansado: calça Lee, calça Levis; suplementos nutricionais, suplementos; tatoo polaco, tatoo. Fico só observando, às vezes, acho graça, vendem até a mãe aqui. Tem propaganda pra todo lado, é dentista, mãe-de-santo, advogado trabalhista, é o diabo a quatro. Tem de tudo. De loja de um real, escritório de bacana, cinema pornô a lanchonete gringa. Mas é tudo pelo dinheiro. É assim que toda essa gente é encantada." (pp. 49-50) - Trecho do conto Homem-placa
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