Sonia Zaghetto - Histórias escritas na água
O romance de Sonia Zaghetto descortina um ambicioso universo de realismo mágico, onde vida e morte se entrelaçam em narrativas densas e poéticas. Sete personagens, abrigados de uma tempestade em uma casa abandonada no coração da selva amazônica, compartilham suas histórias diante de uma cena perturbadora: o corpo de uma mulher morta repousa sobre a mesa, e um ritual de preparação se inicia, envolto em mistério e simbolismo. À medida que a autora entrelaça os fios dessas trajetórias, revelam-se conexões inesperadas que transcendem tempo e espaço, tendo como ponto comum em todas as narrativas a frágil condição humana — marcada pela inevitável alternância do limitado ciclo da existência, entre muitos erros e raros acertos.
A primeira história revelada é a do guia Manoel, que retorna da morte no exato momento de seu próprio enterro. Esse acontecimento extraordinário, longe de ser celebrado, o transforma em um homem rejeitado pela família e pela comunidade local. Manoel carrega o peso de uma vida interrompida e recomeçada, em suas palavras: "Nunca pensei na morte como maldição, doutor. Pra mim ela é alívio. Eu queria estar morto. Só não tenho coragem de cometer o pecado de me matar. Já sofri muito nesta vida. Não quero sofrer depois que morrer... Então vou me aguentando por aqui." A partir desse testemunho, o romance se desdobra em uma sequência de relatos marcados por pecados e sentimentos profundos — traição, inveja, ciúme, vingança, ódio, culpa e vergonha — que atravessam os capítulos em busca de alguma forma de redenção desses personagens.
"O Raimundo tinha essa mania. Ele achava que todo morto não tava morto de verdade. Podia acordar de noite, com aquele montão de terra sobre ele e sufocar até morrer de vez. Uma morte horrível, dizia. Falava que a pessoa ficava arranhando o caixão e morria sem ar, desesperada. Sim, senhor, ele jurava que foi assim com a irmã dele. A coitada apareceu para a mãe dela na noite depois do enterro. Toda suja de terra. Ai, minha mãe, me venha salvar, que o ar me falta. A mãe ficou desesperada, pegou a canoa e lá no cemitério se danou a cavar a terra. Encontrou a filha ainda quente. As unhas quebradas de tanto bater e arranhar. Desde aquele dia, o Raimundo não perdia um enterro. Ia em todos e pedia para abrir o caixão na hora de enterrar. Aí gritava com voz forte, pra todo mundo escutar: 'Fulano, se ainda não chegou a tua hora, levanta daí em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que fez Lázaro ressuscitar!'. Fazia uma pausa e dizia de novo: 'Fulano, assim como Lázaro, em nome de Jesus eu te ordeno: vem para fora!' Pois veja que aquilo foi a sorte do Manoel. Abriram o caixão, o Eleutério atirou nele a água de colônia, errou a mão e botou uma quantidade grande, em vez de umas gotas. Pegou bem na cara. E justo nessa hora o Raimundo deu o grito do Lázaro. Eu não sei até hoje o que foi que aconteceu. Mas ali, de repente, ele tornou pra vida. Deu um gemido alto e viveu de novo." (pp. 24-5)
Ao longo da complexa trama, o leitor se depara com uma rica coleção de referências literárias, históricas, filosóficas e até mesmo teológicas, que ampliam o alcance simbólico da narrativa, fazendo do romance uma surpresa renovada em cada capítulo. Mais do que acompanhar os personagens, o leitor é convidado a se reconhecer neles: em suas escolhas, em seus silêncios, e sobretudo em seus pecados — tão humanos quanto universais. E, ao final, como sugerido pelo título, tudo se desfaz: são apenas histórias escritas na água — impermanentes, líquidas, destinadas ao esquecimento, como nossa breve travessia pela terra.
"Há vários tipos de diabos correndo no mundo. Um deles é magro e liso. Traz uma expressão bajuladora afivelada no rosto e uma sacola de elogios vazios. Nunca levanta a voz, sempre está pronto a oferecer cadeiras, carregar bolsas e a se esconder quando a situação exige firmeza. Sussurra palavras doces, tentando conquistar simpatia. Não toma partido em disputas, preferindo observar de longe, pronto a apoiar o lado vencedor. Os olhos, sempre inquietos, procuram qualquer sinal de perigo para recuar e evitar conflitos. Sua presença é uma constante lembrança da fraqueza humana que se disfarça de gentileza enquanto trama para escapar das responsabilidades e desafios que exigem verdadeira coragem." (p. 147)
O potente romance de estreia de Sonia Zaghetto surpreende o leitor pela liberdade e coragem criativa, explorando com sensibilidade e poesia temas que desafiam a compreensão humana há muito tempo. Ao transitar entre o real e o fantástico, entre o sagrado e o profano, a autora constrói uma dramaturgia que não apenas entretém, mas nos convida a refletir sobre as fragilidades e os medos tão comuns à nossa espécie — aqueles que teimamos em esconder de nós mesmos. Para isso também serve a literatura: para iluminar o que preferimos manter no escuro, e nos lembrar que, embora as palavras sejam efêmeras, são talvez nossa mais bela tentativa de enganar a mortalidade.
"Já o meu filósofo era de outra cepa. Penso que ele era amado porque transcendia o ordinário. Sem ser piegas, atravessava com facilidade a armadura de alguns corações. Particularmente, eu admirava seu domínio da antiga arte de contar histórias. Não exagerou quando me disse, naquele primeiro encontro, sobre sua capacidade de fazer dançarem as palavras. Eram seu brinquedo, a argila maleável na qual esculpia sonhos para os que só conheciam pesares. Simples na aparência, mas precisas, complexas, cheias de camadas de interpretação e de sabedoria. Ao terminar, deixava no ar promessas de esperança e de conforto - e elas me contagiaram. Ao mesmo tempo, era fiel à verdade em que acreditava. Por ela, reduziria a cinzas a grande procissão dos comerciantes da fé (mal sabia ele, coitado...). É necessário ter uma grande habilidade para subverter expectativas e condicionamentos consolidados, abrir olhos que estão confortavelmente fechados." (p. 187)
Sobre a autora: Sonia Zaghetto é escritora, jornalista e tradutora. Orgulha-se de ter nascido na Amazônia e de sua paixão pelos livros. É autora de obras que transitam entre a história, a memória e a introspecção humana. Publicou "Crônicas do Vento de Abril" e "História de Oiapoque", traduziu e organizou edições comentadas de clássicos da literatura. Sua escrita se caracteriza pela fusão entre investigação histórica e lirismo narrativo, compondo histórias que desafiam certezas e mergulham na complexidade da condição humana. Foi finalista do Prêmio Kindle de Literatura 2025, com "Histórias Escritas na Água", seu romance de estreia, obra que reafirma sua literatura como espelho das escolhas, omissões e inevitabilidades da vida.
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