Tiago Feijó - Insolitudes
Tiago Feijó lança a terceira edição da sua coletânea de contos Insolitudes, título que já surpreende ao sugerir uma reunião de eventos insólitos — isto é, situações que escapam à lógica do nosso mundo dito real. Dividido em duas partes, o livro inicia com Insolitudes Literárias, composta por três contos que exploram a metalinguagem. Em A insólita morte de Ernesto Nestor, acompanhamos os últimos momentos de um escritor em pleno processo de criação. No ótimo Josés, o espírito de José Saramago visita outro José, também escritor, para lhe ditar uma obra definitiva vinda do além. Já em Conto tirado de um poema, Tiago Feijó transforma em prosa um poema de Manuel Bandeira.
As referências à "indesejada das gentes" para citar eu mesmo outra expressão célebre de Bandeira, reaparecem na segunda parte da coletânea nomeada Outras Insolitudes, revelando a persistência do tema da morte como no comovente Aqui, dentro de mim, no qual o autor aborda talvez a mais dilacerante das insolitudes: a de uma mãe que enterra o filho, vitimado juntamente com a esposa por um acidente brutal — a queda de um raio. A narrativa, conduzida com extrema intensidade, vai da perplexidade à devastação, numa escalada emocional de cortar o coração. Já em A morte e a pequena Ana, o contraste entre a inocência infantil e o luto se revela por meio de um fluxo de consciência da menina protagonista durante o funeral do irmão mais velho.
"Não sem tremor, ele colhe da pilha de papéis uma lauda branca e íntegra, que faz mergulhar no rolo da máquina. Daqui a alguns minutos, nessa íntegra e branca lauda, Ernesto Nestor depositará a aflição que o consome há anos, arrancando-a de dentro dele como se fosse o seu próprio coração vivo e pulsante. Antes, porém, mais um minuto de pausada reflexão, como que recapitulando os pontos essenciais do tema, como que firmando as fronteiras da história e da personagem, como que procurando o fio inicial da trama, que é ao mesmo tempo o seu começo e o seu fim. Após esse minuto, o tec-tec da máquina principia, tímido e desafinado, até se transformar num tec-tec desabalado e harmônico.[...] O tec-tec da máquina é ininterrupto e em pouco tempo algumas laudas repletas de palavras formam já uma pequena pilha no outro canto da mesa. E se faz o sol para iluminar o dia e dar calor aos animais; e quando sobrevém a noite, cinco palavrinhas apenas forram o céu de trêmulas estrelas; e Ernesto Nestor, lançando mão de um artifício que muito lhe agrada, faz soprar um vento fresco através das copas das árvores, produzindo um brando ruído de folhagens e fazendo com que o nosso autor escreva lentissimamente a palavra 'farfalhar', para ele a mais bela das palavras do dicionário. [...] " (pp. 22-3) - Trecho do conto A insólita morte de Ernesto Nestor
O insólito também se revela em O Olho, uma narrativa de cunho fantástico no estilo da escola argentina de Cortázar ou Silvina Ocampo e, mais recentemente, Samanta Schweblin. Em O caso do cartão, o tom muda para uma bem-humorada vingança passional: o protagonista reencontra um antigo amor do passado — mas não em carne e osso — num desfecho inesperado e espirituoso. Já Uma noite na vida do sr. Lameque mostra uma relação sufocante de dependência psicológica, marcada por uma mãe acusadora que, ao longo dos anos, relembra como o filho teria deixado o irmão morrer afogado no lago durante a infância. Em Há uma gota de orvalho em cada criança, o insólito se alia à crítica social quando uma menina dá uma lição à sua mãe racista na fila dos caixas de um supermercado.
"A história do livro era simples, mais que simples, era de certa forma conhecida para quem conhecesse um pouco da história do próprio autor. O personagem primeiro da narrativa era um homem humilde chamado José, neto de criadores de porcos, nascido numa provinciana vila do Distrito de Santarém. Quando menino, José fora curioso e ensimesmado; homem feito, tornou-se afeiçoado ao trabalho e à leitura. Passou a vida entre os livros e viveu para ecrevê-los. Por força de seu agudo raciocínio crítico, não pôde acreditar em deus, embora carregasse nos ombros o peso descomunal da tradição cristã de seu povo, gente temerosa e indulgente. Corajoso e portador de uma singular honestidade, não calou o grito profano e proclamou a todos o seu convicto ateísmo, por mais demoníaco que isso soasse. Disse, vezes sem conta, que deus não existia, que não tinha jeito dele existir e, se existisse, seria entre os homens o homem mais cruel do mundo. E retirava do mundo e dos homens os principais argumentos para tal afirmação." (p. 46) - Trecho do conto Josés
Não posso deixar de destacar a deliciosa abertura de A insólita morte de Ernesto Nestor, uma das melhores que li nos últimos tempos: "O homem que vemos em pé no centro do vasto cômodo que lhe serve de biblioteca chama-se Ernesto Nestor, e sua morte é próxima. apesar de já estarmos cientes dela, ele mesmo, como é comum aos homens de saúde sã e minguados inimigos, desconhece-a por completo. De algum modo, porém, a pressente." Forte e direto ao ponto, como o estilo do autor que vale muito a pena conhecer posso garantir.
"Enterrei meu filho no dia seguinte. Veio muita gente ver. Ele era querido, tinha muitos amigos. Levei meu filho até a cova aberta. Quando o caixão desceu, quis pular lá dentro com ele. Acho que toda mãe quer. É claro que não me deixaram, senão eu teria pulado. Depois, não queria ir embora de lá, queria ficar com ele, jogada naquele monte de terra, cavar tudo de novo com as minhas próprias mãos para dar nele um último beijo. A Manu, que era portuguesa, não pode ser enterrada junto, A mãe quis o corpo da filha, quis enterrar ela em Portugal. Eu entendi. Ela é mãe, e eu teria feito o mesmo. Morreram de mãos dadas, mas estão enterrados em terras diferentes. Ele aqui, ela lá. E um oceano imenso entre eles. Nessa vida a gente não tem muita escolha, não é livre pra nada. Não se pode nem ser enterrado do lado de quem a gente ama." (pp. 88-9) - Trecho do conto Aqui, dentro de mim
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