Tiago Feijó - Doze dias

Literatura brasileira contemporânea
Tiago Feijó - Doze dias - Editora Penalux - 188 Páginas - Capa: Dáblio Jotta - Diagramação: Guilherme Peres - Lançamento: 2022.

O romance de Tiago Feijó foi lançado originalmente em Portugal, tendo sido finalista do Prêmio Leya 2021 e vencedor do Prêmio Manuel Teixeira Gomes de Literatura no mesmo ano. O fio condutor é o reencontro entre Raul e Antônio, pai e filho, após 15 anos de afastamento nos quais se comunicaram poucas vezes em telefonemas curtos e protocolares. No entanto, este reencontro não se deve a uma decisão voluntária de nenhum dos dois e sim a uma emergência médica, quando o senhor Raul acorda com uma dor que o impede de se levantar e não lhe resta outra alternativa, vivendo sozinho na pequena cidade de Lorena, senão ligar para o filho, que mora em São Paulo, em busca de socorro. Assim começa a saga de doze dias no hospital onde, pai e filho, forçadamente juntos, terão a oportunidade de se conhecerem melhor e, talvez, se perdoarem um ao outro.

Tiago Feijó construiu a sua estrutura narrativa com base em uma linguagem refinada e um elegante narrador onisciente que adiciona comentários às ações e sentimentos dos personagens, assim como digressões sobre a trama, conduzindo o leitor bem ao estilo de José Saramago. Os capítulos alternam cada um dos doze dias da claustrofóbica estadia no hospital em uma original e bem-sucedida sequência, não linear no tempo, enquanto são revelados os fatos que levaram ao afastamento entre pai e filho e outros personagens são apresentados, tais como: Noemi, mãe de Antônio e primeira esposa de Raul; Alice, filha do segundo casamento, que também foi repudiada pelo pai. O leitor irá compreender aos poucos como Raul chegou ao estado de abandono que é decorrente do egoísmo com que conduziu a sua vida até então e da própria opção pela solidão.

"O que se narrará adiante bem poderia ter sido um sonho. O filho mesmo, que ainda dorme como um feto no apoucado espaço desta poltrona de hospital, quando acordar, não saberá ao certo se acordou para a vida ou para um sonho. Vagaroso, tardará um bom tempo até se dar conta de que o ar que respira está carregado do conhecido cheiro de hospital que o persegue há dias, que o toque das suas mãos no ombro do doente lhe comunica a realidade tátil esperada de um toque em acordado, que o som das palavras absurdas proferidas pelo enfermo é tão nítido quanto o som das palavras verdadeiramente pronunciadas, que as gotas de sangue que salpicam o chão ao redor do pai são também vermelhas, como vermelho é o sangue de todo homem. Diante desta realidade tão facilmente detectável, Antônio concluirá, ainda letárgico, que aquilo, não sendo um sonho, é mesmo a realidade deste instante, como são reais os sete dias em que já estão neste hospital. / Mas não aceleremos os passos, não adientemos os fatos. Afinal, Antônio ainda dorme apagado no cansaço, esquecido num fundo escuro de sonho, e por isso não ouve quando o pai desperta acossado por uma pontada de dor que lateja na sua nádega esquerda. Desperta pelo meio da madrugada, quatro e dezesseis da manhã, para não pecar em pontualidade. Acorda e tenta se levantar. A princípio não consegue, são muitos os empecilhos que o impedem. O maior de todos é a sua falta de força, a exaustão do seu estado. Mas o intuito é se erguer, pôr-se de pé e andar, e ele o fará a qualquer custo." - Trecho do Capítulo 1 - Sétimo dia (pp. 9-10)

A epígrafe, que cita Jorge Luis Borges, nos dá uma excelente orientação sobre a verdadeira lição do romance: “Eu não falo de vingança nem de perdão, o esquecimento é a única vingança e o único perdão.” De fato, a proximidade da morte coloca tudo em uma perspectiva mais simples, restando aos personagens aprender a dura lição sobre a inutilidade da vingança ou do perdão quando a vida está em jogo, nessa estranha jornada de doze dias, "assombrados pelos bips regulares do monitor e pelo arfar aflito do oxigênio a cada nova respiração".

"O homem faz planos, nós sabemos. Pinta um futuro inteiro cheio de metas e objetivos. Mal abre os olhos sonolentos pela manhã e já vislumbra à frente um cotidiano todo ordenado, concatenado, roteiro traçado sobre o mapa da vida, desde esta primeira hora da manhã até aquela última hora da noite, quando fechará novamente os olhos para um novo sono. Todo o nosso dia cadenciado assim na ponta das horas. Mas a vida nem sempre se deixa ordenar, nem sempre permite ao relógio regular todas as nossas vontades. A vida, misteriosa como ela só, às vezes nos abre uns rasgões no tecido grosso da realidade, umas brechas, umas frestas aqui e ali, pelas quais podemos nos meter no intuito de escaparmos à ordem das coisas e do dia. / Façamos silêncio e prestemos atenção, porque é exatamente isso que acontecerá daqui a alguns minutos com Antônio, que aí está, saído do banho agorinha mesmo, a toalha cingida à volta da cintura, os cabelos ainda molhados, gotejosos, a cara metida dentro do espelho embaçado onde a mão abriu um espaço ovalado no enfumo do vapor. Olha-se compenetrado enquanto sapeca o rosto de espuma a fim de escanhoar com apuro a barba rala que mal se mostra. Ainda não passa das sete horas da manhã e este homem, cravado diante do espelho, já planeou ordenadamente todo o seu dia, passo a passo, quase sem tempo vago para um mísero pensamento que seja, pois ele bem sabe que as suas terças-feiras são sempre exaustivas." - Trecho do Capítulo 4 - Primeiro dia (pp. 29-30)

O livro, obviamente uma obra de ficção, foi inspirado por uma experiência similar do autor durante o internamento de seu pai e irá despertar eventualmente algumas lembranças difíceis em cada leitor, principalmente os mais maduros. Logo, não é um romance recomendado para aqueles que buscam uma leitura leve, rápida e agradável. Contudo, para aqueles que aceitarem o desafio, posso garantir que encontrarão um belo trabalho de literatura, brilhantemente escrito, apesar da dor que provoca. Acho que ainda vamos ouvir falar bastante de Tiago Feijó. 

"A sala de emergência é bastante apertada, talvez por conta disso é que vemos pai e filho assim tão próximos, tão juntos um do outro. O senhor Raul está espichado na maca, cuja cabeceira permanece levemente inclinada, a fim de fazê-lo respirar com alguma facilidade. O seu corpo quase nu descansa intumescido, amarelado, machucado de hematomas que lhe pintam de roxo as costas da mãos e as articulações dos braços e antebraços onde malfadadas agulhadas intentaram o difícil acesso às suas veias. A máscara de oxigênio está colada à testa, lhe dando o ar patéticode homem deformado. No peito amplo e raspado, vão atados uma constelação de sensores que transportam para um pequeno monitor as enigmáticas informações acerca da frequência cardíaca e respiratória, da pressão sanguínea e da saturação de oxigênio arterial deste corpo à beira do nada. / E quem lê tais informações, ou parece lê-las, não é outro senão o filho que o acompanha há dias. Antônio parece acabrunhado, mal acomodado num improviso de banqueta, que é em verdade uma escadinha de dois degraus que serve para auxiliar o doente a subir e descer da maca, no caso do doente ainda poder subir e descer da maca, coisa que já não é dada ao senhor Raul sem que haja muitas mãos para ampará-lo. Estão os dois assim, desolados, abandonados na estreiteza dessa UTI improvisada. O doente está quase a fechar os olhos sob o peso de um sono que vai e vem feito um mar noturno, indiferente ao sol furioso deste dezembro que raia lá fora. Já o filho permanece desperto, malgrado as noites mal dormidas dos últimos sete dias." - Trecho do Capítulo 13 - Oitavo dia (pp. 90-1)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Tiago Feijó é professor e escritor. Formou-se em Letras Clássicas pela Unesp. Venceu o Prêmio Ideal Clube de Literatura 2014. Além deste romance, é autor dos livros Insolitudes (7letras, 2015-2021) e Diário da casa arruinada (Penalux, 2017), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018. Tem textos publicados em diversas antologias, revistas e blogs de literatura. O romance Doze dias foi finalista do Prêmio Leya Portugal 2021 e vencedor do Prêmio Manuel Teixeira Gomes de Literatura no mesmo ano, segundo os organizadores o autor é o primeiro brasileiro a vencer a premiação aberta a todos os países de língua oficial portuguesa.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Doze dias de Tiago Feijó

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As 20 obras mais importantes da literatura japonesa

As 20 obras mais importantes da literatura francesa

As 20 obras mais importantes da literatura dos Estados Unidos

As 20 obras mais importantes da literatura brasileira

As 20 obras mais importantes da literatura portuguesa

As 20 obras mais importantes da literatura italiana