Tiago Feijó - Doze dias
O romance de Tiago Feijó foi lançado originalmente em Portugal, tendo sido finalista do Prêmio Leya 2021 e vencedor do Prêmio Manuel Teixeira Gomes de Literatura no mesmo ano. O fio condutor é o reencontro entre Raul e Antônio, pai e filho, após 15 anos de afastamento nos quais se comunicaram poucas vezes em telefonemas curtos e protocolares. No entanto, este reencontro não se deve a uma decisão voluntária de nenhum dos dois e sim a uma emergência médica, quando o senhor Raul acorda com uma dor que o impede de se levantar e não lhe resta outra alternativa, vivendo sozinho na pequena cidade de Lorena, senão ligar para o filho, que mora em São Paulo, em busca de socorro. Assim começa a saga de doze dias no hospital onde, pai e filho, forçadamente juntos, terão a oportunidade de se conhecerem melhor e, talvez, se perdoarem um ao outro.
Tiago Feijó construiu a sua estrutura narrativa com base em uma linguagem refinada e um elegante narrador onisciente que adiciona comentários às ações e sentimentos dos personagens, assim como digressões sobre a trama, conduzindo o leitor bem ao estilo de José Saramago. Os capítulos alternam cada um dos doze dias da claustrofóbica estadia no hospital em uma original e bem-sucedida sequência, não linear no tempo, enquanto são revelados os fatos que levaram ao afastamento entre pai e filho e outros personagens são apresentados, tais como: Noemi, mãe de Antônio e primeira esposa de Raul; Alice, filha do segundo casamento, que também foi repudiada pelo pai. O leitor irá compreender aos poucos como Raul chegou ao estado de abandono que é decorrente do egoísmo com que conduziu a sua vida até então e da própria opção pela solidão.
"O que se narrará adiante bem poderia ter sido um sonho. O filho mesmo, que ainda dorme como um feto no apoucado espaço desta poltrona de hospital, quando acordar, não saberá ao certo se acordou para a vida ou para um sonho. Vagaroso, tardará um bom tempo até se dar conta de que o ar que respira está carregado do conhecido cheiro de hospital que o persegue há dias, que o toque das suas mãos no ombro do doente lhe comunica a realidade tátil esperada de um toque em acordado, que o som das palavras absurdas proferidas pelo enfermo é tão nítido quanto o som das palavras verdadeiramente pronunciadas, que as gotas de sangue que salpicam o chão ao redor do pai são também vermelhas, como vermelho é o sangue de todo homem. Diante desta realidade tão facilmente detectável, Antônio concluirá, ainda letárgico, que aquilo, não sendo um sonho, é mesmo a realidade deste instante, como são reais os sete dias em que já estão neste hospital. / Mas não aceleremos os passos, não adientemos os fatos. Afinal, Antônio ainda dorme apagado no cansaço, esquecido num fundo escuro de sonho, e por isso não ouve quando o pai desperta acossado por uma pontada de dor que lateja na sua nádega esquerda. Desperta pelo meio da madrugada, quatro e dezesseis da manhã, para não pecar em pontualidade. Acorda e tenta se levantar. A princípio não consegue, são muitos os empecilhos que o impedem. O maior de todos é a sua falta de força, a exaustão do seu estado. Mas o intuito é se erguer, pôr-se de pé e andar, e ele o fará a qualquer custo." - Trecho do Capítulo 1 - Sétimo dia (pp. 9-10)
A epígrafe, que cita Jorge Luis Borges, nos dá uma excelente orientação sobre a verdadeira lição do romance: “Eu não falo de vingança nem de perdão, o esquecimento é a única vingança e o único perdão.” De fato, a proximidade da morte coloca tudo em uma perspectiva mais simples, restando aos personagens aprender a dura lição sobre a inutilidade da vingança ou do perdão quando a vida está em jogo, nessa estranha jornada de doze dias, "assombrados pelos bips regulares do monitor e pelo arfar aflito do oxigênio a cada nova respiração".
"O homem faz planos, nós sabemos. Pinta um futuro inteiro cheio de metas e objetivos. Mal abre os olhos sonolentos pela manhã e já vislumbra à frente um cotidiano todo ordenado, concatenado, roteiro traçado sobre o mapa da vida, desde esta primeira hora da manhã até aquela última hora da noite, quando fechará novamente os olhos para um novo sono. Todo o nosso dia cadenciado assim na ponta das horas. Mas a vida nem sempre se deixa ordenar, nem sempre permite ao relógio regular todas as nossas vontades. A vida, misteriosa como ela só, às vezes nos abre uns rasgões no tecido grosso da realidade, umas brechas, umas frestas aqui e ali, pelas quais podemos nos meter no intuito de escaparmos à ordem das coisas e do dia. / Façamos silêncio e prestemos atenção, porque é exatamente isso que acontecerá daqui a alguns minutos com Antônio, que aí está, saído do banho agorinha mesmo, a toalha cingida à volta da cintura, os cabelos ainda molhados, gotejosos, a cara metida dentro do espelho embaçado onde a mão abriu um espaço ovalado no enfumo do vapor. Olha-se compenetrado enquanto sapeca o rosto de espuma a fim de escanhoar com apuro a barba rala que mal se mostra. Ainda não passa das sete horas da manhã e este homem, cravado diante do espelho, já planeou ordenadamente todo o seu dia, passo a passo, quase sem tempo vago para um mísero pensamento que seja, pois ele bem sabe que as suas terças-feiras são sempre exaustivas." - Trecho do Capítulo 4 - Primeiro dia (pp. 29-30)
O livro, obviamente uma obra de ficção, foi inspirado por uma experiência similar do autor durante o internamento de seu pai e irá despertar eventualmente algumas lembranças difíceis em cada leitor, principalmente os mais maduros. Logo, não é um romance recomendado para aqueles que buscam uma leitura leve, rápida e agradável. Contudo, para aqueles que aceitarem o desafio, posso garantir que encontrarão um belo trabalho de literatura, brilhantemente escrito, apesar da dor que provoca. Acho que ainda vamos ouvir falar bastante de Tiago Feijó.
"A sala de emergência é bastante apertada, talvez por conta disso é que vemos pai e filho assim tão próximos, tão juntos um do outro. O senhor Raul está espichado na maca, cuja cabeceira permanece levemente inclinada, a fim de fazê-lo respirar com alguma facilidade. O seu corpo quase nu descansa intumescido, amarelado, machucado de hematomas que lhe pintam de roxo as costas da mãos e as articulações dos braços e antebraços onde malfadadas agulhadas intentaram o difícil acesso às suas veias. A máscara de oxigênio está colada à testa, lhe dando o ar patéticode homem deformado. No peito amplo e raspado, vão atados uma constelação de sensores que transportam para um pequeno monitor as enigmáticas informações acerca da frequência cardíaca e respiratória, da pressão sanguínea e da saturação de oxigênio arterial deste corpo à beira do nada. / E quem lê tais informações, ou parece lê-las, não é outro senão o filho que o acompanha há dias. Antônio parece acabrunhado, mal acomodado num improviso de banqueta, que é em verdade uma escadinha de dois degraus que serve para auxiliar o doente a subir e descer da maca, no caso do doente ainda poder subir e descer da maca, coisa que já não é dada ao senhor Raul sem que haja muitas mãos para ampará-lo. Estão os dois assim, desolados, abandonados na estreiteza dessa UTI improvisada. O doente está quase a fechar os olhos sob o peso de um sono que vai e vem feito um mar noturno, indiferente ao sol furioso deste dezembro que raia lá fora. Já o filho permanece desperto, malgrado as noites mal dormidas dos últimos sete dias." - Trecho do Capítulo 13 - Oitavo dia (pp. 90-1)
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