Thiago Camelo - Dia um
O romance descreve a trajetória de uma família de classe média carioca que precisa lidar com o suicídio de um de seus membros e de como essa tragédia influenciou a vida de todos. A condução da narrativa é feita em segunda pessoa, utilizando o pronome 'você' e nomeando os personages apenas como: 'seu pai,' 'sua mãe', 'sua avó', 'seu irmão do meio' e 'seu irmão mais velho', uma estratégia que mostrou-se apropriada neste caso ao provocar um certo afastamento e um olhar impessoal, protegendo, assim, o protagonista-narrador (irmão mais novo) e o próprio autor que também passou por experiência semelhante ao ter que assimilar o suicídio do irmão mais velho. Para os que ficam, a vida precisa prosseguir, contudo o dia um do título é o dia que não quer passar, o dia que dá início ao livro.
Antes da tragédia, todos convivem em função da doença e das variações de humor do irmão; por meio de saltos temporais, o autor demonstra o esforço coletivo da família para minimizar os efeitos da depressão em um constante estado de tensão ou relaxamento, de acordo com as crises do personagem e, posteriormente, lidando com o suicídio, cada um ao seu modo, lutando para superar o luto e voltar ao cotidiano. A literatura, às vezes, parece insuficiente para expressar tamanha dor, mas a franqueza e sensibilidade do texto emocionam: "Até hoje apesar de tudo, tudo, você acha que pode de fato ter sido um acidente. Que ele pode ter acordado bem, ido olhar o sol, o brilho, ter tropeçado e caído. / O suicídio é uma espécie de deus das culpas. O suicídio é uma espécie de deus das saudades."
"Você é um dos que mais choram. Sua mãe é a que mais passa mal. Um buraco aguarda seu irmão. Nada mais distante dos enterros cinematográficos, em que o caixão desce e depois se jogam terra e flores, e repentinamente em cima daquela terra já há grama, e em cima da grama mais flores, uma lápide bonita e imaculada, às vezes uma foto, uma frase de amor; um lugar para visitar de tempos em tempos. O que deu para arranjar no São João Batista foi um acanhado espaço muma parede repleta de caixões, cavidade que depois seria preenchida com tijolos, madeira e pregos e amassada sabe-se lá com quê. Sem data e sem nome, acima de milhares de túmulos, abaixo de milhares de túmulos, entre centenas de lances de escada, escondido por horizontes e horizontes de cimento, mesmo que você quisesse visitar seu irmão no cemitério nos anos seguintes, o que você nunca quis, seria difícil, você teria que perguntar ao seu pai, ou pedir alguma identificação no próprio cemitério, um número gigantesco que equivaleria, no fundo, ao seu irmão e aos palmos de parede nos quais ele está encaixotado. [...]" (p. 45)
O livro de Thiago Camelo não deixa de ser também um romance de formação, ao mostrar o desenvolvimento da personalidade dos três irmãos desde a infância em Jacarepaguá, a forma como o ambiente no bairro marcou de forma diferente cada um deles, para o bem ou para o mal, fazendo com que este foco local tenha tornado, por oposição, a narrativa mais universal, como é comum nos bons textos literários. Apesar do esforço para ajudar o irmão em vida, a culpa é inevitável, um fantasma que persegue os personagens, a sensação de que podiam ter feito mais : "Você meio que não queria vivenciar certos constrangimentos, nem mesmo a expectativa de um possível constrangimento; você tinha um pouco de vergonha prévia, e isso o mata por dentro hoje."
"Dois anos antes, talvez três, você percebeu pela primeira vez que algo estava errado. Era uma festa, um aniversário? Uma conversa do seu irmão com sua tia, o corpo deleum pouco mais curvado, uma tristeza exposta na pele, uma náusea estranha e distante e, ao mesmo tempo, ameaçadora e palpável: o que estava acontecendo? Você não lembra se ouviu algum 'não estou bem', 'ando triste', acho que o meu...'. Nada. Só recorda de olhar de longe e pressentir a tristeza, o prenúncio da tempestade que ainda caminha leve entre os espaços, uma brisa aterradora. Dali até o fim, você nunca mais observaria ou trataria seu irmão da mesma forma; ele tinha alguma coisa, um tipo de mal que andava e crescia, andava e crescia; e estava chegando. Mesmo à distância, mesmo refreado pela perspectiva adolescente, já era violento e perturbador. / Algum problema com ele, mãe?" (p. 111)
O grande mérito do autor foi contar uma história tão difícil e equilibrar o sofrimento que envolve o luto e a depressão de forma sensível e verdadeira (difícil não se identificar em algumas passagens), sem necessariamente martirizar o leitor. Destaque para a rara e difícil condução em segunda pessoa, uma opção arriscada que geralmente funciona em textos de menor extensão como contos, mas que pode se tornar cansativa em romances mais longos, não agradando a todos os leitores. No final, acho que combinou muito bem com a proposta da obra, um distanciamento que preservou o autor e o protagonista, que ficariam muito expostos em uma narrativa tradicional em primeira pessoa.
"Você nunca vai a missas, mas supõe que os cumprimentos sejam comuns. Então é assim. É como num casamento. Abraços e beijos por todos os lados. Há quase um sorriso. Há quase um sorriso franco no canto dos seus lábios. Os dentes. Amigos de outra vida aparecem. Um deles está louro, ou melhor, com o cabelo descolorido. Você não o vê há anos, ele está mais gordo também. Você momentaneamente se sente leve. Anestesiado como no fim de um canto de parabéns. Você está quase feliz. Um debutante em enterros, um debutante em missas. Um debutante merece respeito e atenção. As filas lhe proporcionam isso. / Enquanto desce a rampa elíptica com seus pais, você tira o celular do bolso, abre o aplicativo e pede um carro. A casa deles é ao lado da galeria, mas andar requer algum esforço e ninguém aguenta mais nada, ou, você pensa, toda a família quer conservar a energia estranha e revigorante que inevitavelmente vai se perder. O desespero vai voltar. O dia vai voltar." (p. 134)
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