Ana Elisa Ribeiro - Menos ainda

Poesia brasileira contemporânea
Ana Elisa Ribeiro - Menos ainda - Editora Impressões de Minas - 80 Páginas - Projeto gráfico: Elza Silveira - Ilustrações: Wallison Gontijo - Lançamento: 2022.

Em seu mais recente livro de poemas, "Menos ainda", Ana Elisa Ribeiro nos apresenta um bem-humorado jogo de metalinguagem que utiliza a própria poesia como inspiração, marcando os 25 anos de persistência da poeta falida, como ela mesma ironiza no poema-biografia "Meia vida": "Já a metade / da minha vida / passei nesta lida // com letras, / papel, projeto, / poemas, falida. // Já a metade, / conforme contei / outro dia. // E prestes já / a contar / mais da metade, / em breve, // estimando, / quem sabe, / que, ao cabo, / pareça ter sido leve." A poeta assume o papel da desimportância que torna explícito no ótimo "Nem Drummond nem Torquato (menos ainda Adélia)": "Quando nasci / não veio anjo / algum // O sol se escondia / do outro lado do planeta // E eu surgi / completamente / noturna // por entre as pernas / roliças / de minha mãe: // 'vai, filha, / desbravar trilha'."

Uma edição que conta com acabamento gráfico caprichado da Editora Impressões de Minas, projeto de Elza Silveira, incluindo detalhes em relevo e luva na orelha da quarta capa com dois encartes que representam a inadequação profissional da atividade de poeta:  “Ficha do Hotel Onde se Hospeda a Poeta” e a “Carteira de Trabalho”. Existe ex-poeta? Quando poetas se tornam romancistas eles deixam de ser poetas? Brincadeiras à parte, a epígrafe da escritora catalã Irene Solà do seu romance "Canto eu e a montanha dança" define muito bem a questão de como lidar com a ironia: "Às vezes, canto os meus poemas. De brincadeira, para experimentar. A poesia é jogo, também. O poeta precisa ser brincalhão. A poesia é um assunto sério, dos mais sérios que há. Mais sério que a morte, que a vida e que tudo. Um assunto profundo e vital. E, por isso mesmo, é preciso saber brincar, e saber rir, e entender de ironia."

Breve entrevista imaginária

O que é preciso para ser poeta?
Antes de tudo, deligar-se da língua;
e religar-se daí a uns segundos.

O que mais é preciso para ser poeta?
Estar no mundo,
reparando-o minuciosamente,
mas com ar levemente distraído.

Para ser poeta, o que é necessário?
Encontrar silêncios.
Eles são difíceis de achar e de manter.

Algo mais?
Silêncios para fazer ruídos
só por dentro.

E mais alguma recomendação?
Ah, claro,
desobedecer.

Notícia com estatística

Morre um escritor a cada segundo.
Morre devastado, afogado ou massacrado.
Morre assim, sem piedade.
Morre zonzo, morre torto.
Morre bem morto.

Morre um escritor a cada dedada
do cartão de ponto.
Morre indo e morre voltando
do desafortunado trabalho insano.
Morre um escritor a cada golpe
de desatenção e desconcentração.

Morre um escritor a cada meia hora.
Morre um escritor na fila que demora.
Morre um ecritor a cada escolha besta
na seleção da universidade.
Morre muito escritor nesta cidade.

Morre um escritor a cada livro
não vendido ou emprestado.
Morre um escritor.
E morre sem mágoas.
Morre um escritor
para cada meio leitor.

Afinal, menos ainda

Com poesia, pagas os boletos,
com os versos, com as rimas
parcelas o cartão em cem vezes,
cem meses de paz sobre as entrelinhas.

Com os recitais, comes e bebes de graça,
chegas em casa sem fome
e podes dormir tonta feito uma porca.

Com os alexandrinos, podes seduzir
dezenas de homens interessados
em uma poeta excêntrica,
e esses homens que não sabem 
o que são alexandrinos
são bem mais charmosos
do que aqueles que escrevem
rimas ricas e sabem escandir.

Com tuas estripulias versificadas,
Impressionas antologistas,
mas não atrais sequer um telefonema
daqueles editores de obras completas.

Gente morta, gente morta,
vês gente morta apertada nas estantes,
circulando ferozmente nas colunas
de revistas importantes e modernas.

Este teu talento mediúnico, sabes,
é muito útil para a produção de aulas
e livros escolares de uma matéria
gasta e ridícula a que chamam literatura.

Com chave-de-ouro,
hás de redigir teu próprio epitáfio
com capricho extremo,
e antes de te esvaíres na forma de uma alma
gasosa e cansada, hás de ouvir
o sussurro fúnebre do editor tristíssimo
ao resenhista visivelmente abalado:
ah, um gênio que se vai.

Com sorte, ainda terás tempo
de soprar-lhes no ouvido
um sonoro palavrão.

Poesia brasileira contemporânea
Sobre a autora: Ana Elisa Ribeiro, Belo Horizonte, MG, 1975. Teve sua carteira de trabalho assinada algumas vezes como professora, assistente editorial e editora. Passou a servidora pública federal em 2006, como docente, e aí a coisa engrenou, mas o tempo para ler e escrever literatura diminuiu. Diante de todos os impasses, manteve-se teimosa. Para a Receita Federal, é professora de uma autarquia. É doutora em Estudos Linguísticos – pós-graduação completa – em vários questionários e formulários. Raramente assina como poeta, embora essa atividade seja anterior a todas as outras. Em 2021, seu livro, "Dicionário de imprecisões", publicado também pela Impressões de Minas, foi finalista do Prêmio Jabuti.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Menos ainda de Ana Elisa Ribeiro

Comentários

nostodoslemos disse…
"Morre um escritor".
Quão atual.
Morre quando morrem livrarias e os possíveis leitores que não chegaram a sê-los.
Alexandre Kovacs disse…
Oi Lígia, isso mesmo. "Morre um escritor a cada livro não vendido." Obrigado pela visita e comentário!

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