César Vallejo - Escalas Melografiadas e Fábula Selvagem
O escritor peruano César Vallejo (1892-1938) lançou dois livros de poesia em vida: Os Arautos Negros (1918) e Trilce (1922). Depois, em 1923, publicou Escalas Melografiadas e Fábula Selvagem, obras em prosa, reunidas neste volume em tradução inédita no Brasil, projeto editorial de Sandra Abrano da Editora Bandeirola, prefácio de João Mostazo e posfácio de Antonio Merino. Ainda em 1923, após ser preso injustamente por 112 dias, Vallejo deixou o Peru para um exílio voluntário na Europa, tendo morrido na França aos 46 anos, em 1938. Hoje é considerado um dos grandes escritores da literatura hispano-americana do séulo XX, tendo consolidado um estilo fantástico que inspirou, entre outros movimentos, o realismo mágico na literatura latino-americana da década de 1950.
Os contos de Escalas Melografiadas foram escritos durante e logo após o período passado por Vallejo na prisão, a primeira parte, Cuneiformes, integralmente escrita no cárcere e constituída por uma série de narrativas curtas protagonizadas por outros prisioneiros, assim como reflexões sobre a justiça: "A justiça não é função humana. Não pode ser. [...] A justiça só assim é infalível; quando não vê através das lentes inúteis dos juízes; quando não está escrita nos códigos; quando não está a serviço dos cárceres e dos guardas. / A justiça, assim, não se exerce, não pode ser exercida pelos homens, nem pelos olhos dos homens. / Ninguém é delinquente nunca. Ou todos somos delinquentes sempre." Como bem destacado no posfácio de Antonio Merino, existe uma similaridade com o personagem de Kafka, Josef K., no clássico O processo.
"Este homem é um delinquente. Através de sua máscara de inocência, o criminoso só se denuncia. Durante sua tagarelice, minha alma o seguiu, passo a passo, na manobra proibida. Nós dois festejamos dias e noites de algazarra, munidos de bravateiros álcoois, dentaduras gargalhantes, cordas enfermiças de violões, navalhas em guarda, e crápulas até a última gota de suor e tédio. Pelejamos com a companheira indefesa que chora para que não beba o marido e para que trabalhe e ganhe os centavos ao menos para os pequenos, que para ela Deus proverá... e logo, com as entranhas ressecadas e ávidas do pileque, demos a cada madrugada o salto brutal à rua, fechando a porta sobre os beiços da prole gemebunda. / Com ele, também sofri os fugazes chamados à dignidade e à regeneração; enfrentei as duas caras da moeda, duvidei e até senti quando ele rompeu o calcanhar que lhe insinuava a meia-volta. Em uma manhã, teve pena o manguaceiro, pensou em ser formal e honrado, saiu a buscar trabalho, mas logo tropeçou com um amigo e, de novo, a bile se cortou. No final, a necessidade o fez roubar. E agora, pelo que lhe confere seu processo penal, não tardará sua condenação." - Trecho de Muro duplo (pp. 31-2)
Na segunda parte de Escalas Melografiadas, uma reunião de contos sob o título de Coro de Ventos, apresenta narrativas mais longas que tratam de temas variados. Em Além da Vida e da Morte, o protagonista retorna ao seu vilarejo natal após onze anos de ausência, lembrando da infância, os irmãos, a casa e a mãe já morta. O Filho Único é uma interessante fábula de amor platônico que se transforma em uma crítica mordaz aos dogmas da igreja. Já no ótimo Os Caynas, o argumento é a loucura, quando todos os integrantes de uma família se tornam "vítimas de uma obsessão comum, de uma mesma ideia, zoológica, grotesca, lastimosa, de um ridículo fenomenal; acreditavam ser macacos, e, como tais, viviam." A estranha obsessão se espalha por toda a cidade e, no final, a loucura e o seu tratamento se tornam temas subjetivos, na conclusão do próprio narrador que pensa ainda ser um homem e não um macaco: "E aqui vocês me têm, louco", me lembrou muito O Alienista de Machado de Assis.
"Minha mãe me convidou a ir uma noite com ela saber do estado dos parentes loucos. Não encontramos na casa nenhum deles, exceto a mãe de Urquizo, que, quando chegamos, entretinha-se em folhear tranquilamente um calhamaço de papeizinhos, à luz de uma lâmpada que pendia no centro da sala. Dado o isolamento e atraso daquele povoado, que não possuía instituições de beneficência, nem esquadrão de polícia, esses pobres doentes da cabeça saíam quando queriam à rua, e assim era comum vê-los a qualquer hora cruzar onde quisessem pelo lugarejo, introduzir-se nas casas, despertando sempre o riso e a piedade em todos. / A mãe dos loucos apenas nos enxergou, gritou agudamente, franziu as sobrancelhas com força e certa ferocidade, seguiu fazendo-as vibrar ce cima para baixo várias vezes, e atirou com um mecânico gesto os papéis que manuseava; e, se acocorando sobre o assento, com infantil rapidez rapidez escolar de quem enfrenta o professor, recolheu seus pés, dobrou os joelhos até a altura do nascimento do pescoço, e, desde esta forçada atitude, parecida à das múmias, esperou que entrássemos na casa, cravando-nos, brilhantes, móveis, inexpressivos, selváticos, seus olhos teiaranhados que aquela noite se comportavam assombrosamente como os de um macaco. Minha mãe se agarrou a mim assustada e trêmula, e eu mesmo me senti surpreendido de terrífica sensação de espanto. A louca parecia furiosa." - Trecho de Os Caynas (p. 70)
Na novela Fábula selvagem, a narrativa utiliza elementos fantásticos da cultura popular, colocando em risco a sanidade mental do protagonista, Balta Espinar, que mantinha uma existência feliz com sua jovem esposa Adelaida até que ocorre um evento de mau agouro: "Aproximou-se do pilar e puxou o prego que prendia o pequeno espelho. Viu-se nele e teve um súbito estremecimento. O espelho se estilhaçou no pavimento de cerâmica, e no ar tranquilo da casa ecoou um áspero e brevíssimo ruído de vidro e latão." A partir da quebra do espelho o comportamento de Balta muda gradativamente dominado pela personalidade de um "outro". Esta bem-cuidada edição é uma ótima oportunidade de conhecer os textos do peruano César Vallejo, um livro muito recomendado.
"Balta lembrou-se de uma coisa estranha de quando se olhou no espelho naquela manhã: vira cruzar pelo cristal uma cara desconhecida. Foi o espanto que relampeou em seus nervos fazendo-o derrubar o espelho. Passados alguns segundos dessa sensação, acreditou que alguém tinha surgido por detrás dele, e depois de se virar às costas e a todos os lados em sua busca, pensou que devia estar ainda transtornado pelo sono, pois acabara de se levantar, e se tranquilizou. Mas, agora, no meio da noite, ouvindo os prantos de sua mulher insone, a cena do espelho surgia em sua mente e o atormentava. Não obstante, reconheceu ser seu dever consolar a Adelaida. [...] No dia seguinte, a primeira coisa que fez Balta foi sair à rua e comprar um espelho. Tinha a fantástica obsessão do dia anterior. Não se cansava de olhar o cristal, pendurado na coluna. Inutilmente. A projeção de seu rosto agora era normal e não se turvou nem a mais leve estranha sombra." - Trecho de Fábula selvagem (pp. 109-10)
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