Leonardo Almeida Filho - Os possessos
O poeta e escritor Leonardo Almeida Filho aceitou o desafio de fazer literatura a partir da crise política que se instaurou em nosso país nos anos recentes, contudo sem cair na armadilha de um discurso meramente panfletário. Em seu romance, Os possessos, o início da narrativa é marcado pelo velório do protagonista, Luiz Carlos Mariano, um famoso e, ao mesmo tempo, solitário escritor encontrado morto em seu apartamento em Copacabana, sendo, portanto, toda a construção ficcional desenvolvida por meio da visão dos outros personagens que conviveram com ele e da sua própria obra, inclusive notas autobiográficas. As múltiplas e conflitantes vozes, assim como a inserção de diferentes gêneros literários, tais como a tradução de poemas e crônicas de costumes, formam aos poucos uma imagem precisa das nossas mazelas contemporâneas, como indivíduos e também como nação.
Em contraponto à contemporaneidade do tema, o autor insere no contexto do livro a obra ficcional do poeta Friedrich Wahrheit-Lüge, traduzido pelo protagonista, um personagem anti-fascista que viveu na Alemanha dos anos 1920 e 1930 e também não resistiu ao seu tempo, suicidando-se assim que Hitler assumiu o poder. Esse assustador paralelismo histórico é um ponto a se destacar no romance de Leonardo Almeida Filho que propõe, em última análise, uma discussão sobre a responsabilidade dos intelectuais em uma época de disseminação do ódio como estratégia de propaganda política, perseguição de minorias, propagação de ideias ultraconservadoras com base em fake news e demonização dos antagonistas. No livro, o escritor Luiz Carlos Mariano, triste e deprimido, também por seus próprios problemas pessoais, optou pela desistência e pelo isolamento.
"Apenas três pessoas compareceram ao funeral de Luiz Carlos Mariano no cemitério São João Batista: seu irmão, Teo, que permaneceu o tempo todo conferindo os minutos no relógio e lendo mensagens no celular; José Matias, com um buquê de margaridas murchas, o porteiro do prédio em que Luiz Carlos morava e que fumou um cigarro após o outro, impacientemente; e uma mulher silenciosa, elegância e discrição em negro, que nenhum dos dois conhecia muito além do nome, Helena, e de um bom dia ou boa tarde nos raros encontros fortuitos que tiveram à porta do apartamento e na portaria do prédio onde morava o falecido. Óculos escuros, cabelos castanhos amarrados num coque, chorou discretamente diante do corpo estendido em um caixão escuro laqueado, lacrado, coberto por lírios brancos, e que parecia flutuar no cheiro de velas e flores apodrecidas que enchiam a capela. [...] O caixão de Luiz Carlos Mariano foi transportado à sepultura pontualmente às 17 horas, o céu cinza, o ar úmido e ardente. Além dos funcionários do Cemitério, duas testemunhas acompanharam o féretro que desapareceu sob uma placa de concreto e, nela, o olhar impaciente de Teo e uma baforada de José Matias. A mulher que, minutos antes, havia abandonado o local silenciosamente, deixando um perfume diferente de flor na capela, andava neste momento pela Voluntários da Pátria, perdida em pensamentos e saudades." (pp. 17-8)
Neste grande exercício de metalinguagem que reflete sobre a literatura e os escritores, o leitor é que sai ganhando com passagens de extrema beleza, nas quais uma singela conjugação verbal, colocada estrategicamente no texto, pode fazer toda a diferença e provocar arrepios: "Quando as noites se tornaram eternas e o sol transformou-se numa saudade quente, aceitamos a nova realidade como quem se conforma com o tumor que lhe cresce por dentro, comendo-lhe as as vísceras lentamente. Era justamente essa a condição imposta a todos que, em silêncio, aceitamos as trevas que se aproximaram devagar e tomaram todas as ruas, pintando de escuridão os becos, os jardins, as praças. Agora eram tempos de uma longa noite sem fim."
Balada para o homem mínimo
Meus olhos medem as coisase tudo é tão grande em minhas retinasque me pesa, pisa e esmagatoda imensidãoO homem que sousente-se encolhere percebe então que é mínimomas que cabe em si- assustadoramente -todo amor do mundotoda dor e todo risoQue, nas dimensões do ínfimo,é repositório de tremendos desencantose de enormes frustraçõesO homem quase-nadacontém tanto desejoque, ao percebê-lo, assusta-see some, nanico de si mesmo,em sua insignificânciadiante dessa epifaniaMas o que dizer desse homemque, sendo pequenino,abriga o imponderável?Sendo ínfimo, abraça o imensurável?Sendo um quase-nadaé, mais que tudo,mistério e assombro,imensidão intocável?
Outro destaque do livro de Leonardo Almeida Filho é o acréscimo das crônicas de Copacabana, escritas por seu protagonista, que nos mostram um outro aspecto do famoso bairro do Rio de Janeiro, conhecido internacionalmente como cenário de alegria e felicidade, uma região com uma absurda concentração populacional e que, no entanto, muitas vezes é um reduto de solidão e desespero. O trecho abaixo é um bom exemplo de como o autor utiliza um estilo leve para falar de assuntos espinhosos, por sinal uma caracterísitica de todo o romance.
"[...] O morador de Copacabana é um apaixonado pelos cães. De todas as raças, tamanhos, cores. Uns silenciosos, outros escandalosos. Uns agressivos, outros dóceis e medrosos. Andar pelas ruas de Copacabana é esbarrar com esses animais. É difícil distinguir quem guia quem, pois eles parecem levar seus donos para passear e manter contato com o mundo. Sim, são os cães que retiram seus donos de suas solidões e recolhimentos, dos apartamentos pequenos e os levam para ver outros donos e seus cães pelas ruas. Circulando pelo quarteirão ou caminhando na praça do Bairro Peixoto, os cães se atraem, se cheiram e, nesse contato, obrigam seus donos, que nunca se viram antes, a se aproximarem e conversarem. Do cumprimento de bom dia ou tarde, passa-se às perguntas sobre os animais, idade, sexo, nome e acaba-se ingressando em assuntos menos caninos e mais humanos, trivialidades, política, futebol, mulher, carestia, arrastão, medo, festa... os habitantes dos conjugados e kits mantêm contato com os moradores dos grandes apartamentos e casas de vilas. Tudo se dá por causa desses bichos que nos obrigam a dar voltas para que façam suas necessidades. É curioso notar que acabamos por saciar as nossas necessidades de contato humano, de ouvir o outro, de ver e sentir o estranho tão familiar, que partilha a vidazinha de Copacabana ao seu lado e que, de outra forma, passaria incólume ao seu afeto. [...]" (p. 112)
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