Leonardo Almeida Filho - Grande Mar Oceano
Um romance histórico é sempre desafiador para qualquer escritor, ainda mais quando a narrativa é conduzida por vozes alternadas em épocas e locais distintos. Uma saga que tem início com Lúcia dos Prazeres, portuguesa, caçula de Pedro Sapateiro e Maria do Pote, sobrevivente do grande terremoto de Lisboa em 1755, assim como o primogênito Gaspar que perdeu-se no mundo, num barco que partiu para Goa. Lúcia é convencida pelo marido, viciado no jogo e bebida, a abandonar tudo em Portugal na esperança de um futuro melhor no Brasil, principalmente depois da morte misteriosa do irmão Salvador que sofria de demência.
O casal levou apenas um baú contendo roupas e coisas miúdas, o que restou após a venda de todos os seus bens para que pudessem comprar os lugares na embarcação que cruzaria o Grande Mar Oceano, uma viagem de cinquenta dias, primeiramente até o porto de São Salvador da Baía de Todos os Santos para depois chegarem ao destino final: a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, tão bela ao ser avistada de longe mas, de perto, "uma estrumeira, um poço de excrementos. Negros, seminus, faziam suas necessidades ali, ao ar livre, como a animália solta.[...] Havia animais mortos, em decomposição, expostos no caminho. Mendigos bexiguentos implorando ajuda com suas feridas sanguinolentas exibidas sem pudor."
"Não há tempo ruim para o trabalho. Há dois dias, quando a Nossa Senhora da Conceição enfrentou ventos fortes e temporal, às costas da África, ondas violentas sacudindo a embarcação e encharcando tudo, o contra-mestre impressionou-se com a força, a disciplina e o destemor daquele mirrado marinheiro. Era de pouca conversa, mas de presença marcante, considerando-se tratar-se de um reles grumete. Ao contrário da grande maioria da tripulação, o jovem sabia ler e se expressar com certa facilidade, coisa que extrapolava o berço, era-lhe natural aquela verborragia direta, sem pelancas. Ao receber ordens, as queria de maneira clara. Se não entendia a demanda, não temia perguntar, pedir esclarecimento. Talvez por isso mesmo, as tarefas que lhe cabiam eram executadas com perfeição. Um grande defeito era a tendência a pegar-se catatônico, olhando o horizonte líquido do mar oceano, a expressão distante, como se visse o fim do mar tenebroso. Nada que comprometesse suas tarefas, mas que chamava a atenção de todos a bordo. Que raios está a pensar esse grumete? perguntava, ao flagrá-lo a barlavento, o capitão ao contra-mestre. Talvez pense no lugar de onde vem o vento, meu capitão. Riram-se. Gaspar pensava em Lúcia, em Pedro Sapateiro e, a contragosto, em Salvador. Tinha saudades de Maria do Pote mas, mais que a saudade, tinha o desejo enorme de abraçar o mundo." - Oceano Índico, 1761 (p. 27)
Após o choque inicial na chegada ao Rio, Lúcia acaba se acostumando à cidade e conseguindo sustentar a família com a venda de doces e bolos para uma extensa clientela. Já no final da sua vida de muito trabalho e sem filhos, decide adotar a pequena Joaquinna dos Santos Marrocos em 1814, uma criança que foi rejeitada pelos pais e entregue às freiras por uma família importante, devido à geração indesejada, antes do casamento. Joaquinna foi criada com muito carinho e soube gerenciar com sucesso os negócios de Lúcia, viveu uma paixão por um jovem negro escravo que foi lutar na Guerra do Paraguai com a promessa de alforria na vitória, mas nunca retornou.
Joaquinna escreveu cartas e poemas – incorporados ao romance, aproveitando os recursos do autor que também é poeta – para o seu amado, identificado apenas como J.G., na esperança de que pudessem ficar juntos após a guerra e, quando teve a certeza de sua morte, decidiu permanecer até o fim da vida em luto fechado. Ela também adotou uma menina, durante uma viagem a Lisboa, Isabel Inojosa Tavares, que irá dar prosseguimento a esta peculiar família que liga o Brasil e Portugal em uma travessia do Grande Mar Oceano.
"Sinto a idade a pesar-me nos ombros. Eu que sempre fui um verdadeiro motor, um dínamo de engrenagens muito potentes, ando me arrastando como se carregasse pedras invisíveis. Eu, senhora do meu tempo, pareço uma mula velha e alquebrada. Ah, como é lamentável envelhecer. É assim que me sinto nos últimos tempos, uma velha. Creio que a proximidade de meus sessenta anos anda mostrando-se escandalosamente. Uma junta que me dói, um joelho que lateja, a coluna que se trava ao menor movimento. Tenho hoje quase a idade que tinha minha mãe quando me adotou. Olhando-me no espelho creio que me tornei uma Joaquinna em seu vestido negro e seu olhar desolado. [...] Lembro-me de minha mãe, já no fim da vida, alquebrada, a contar-me que tinha 64 anos quando cruzou o Grande Mar Oceano para visitar a cidade que tanto encantava Lúcia dos Prazeres, a sua mãe e minha avó, ela também portuguesa, como eu. Joaquinna contou-me que Lúcia, no fim da vida, lamentou-se por não ter tido oportunidade de rever sua cidade, de percorrer as ruas da velha Lisboa, morrendo velhinha no século passado. [...]" - Rio de Janeiro, Março de 1940 (p. 81)
Isabel Inojosa Tavares, representante da terceira geração, segue a tradição e adota Salvador Monteiro da Silva, um menino que sofreu maus-tratos e fome. Testemunha de fatos relevantes da história do Brasil no século XX, Salvador ficará responsável por doar o baú para a Biblioteca Nacional, contendo diários, cartas e fotografias que descrevem a epopéia da família a partir das anotações de Lúcia dos Prazeres no século XVIII (curiosamente, todas as gerações posteriores desta famíla são formadas por adotados nos dois continentes).
Finalmente, já nos anos setenta, durante os anos da repressão, um novo personagem, Moisés, jovem funcionário da Biblioteca Nacional e aspirante a escritor e poeta, ficará responsável pela triagem e catalogação de todo o material encontrado no baú. A leitura do acervo, incluindo as cartas e poemas de Joaquinna, servirão como inspiração para que ele assuma a vocação de escritor e também coragem para demonstrar o seu posicionamento político.
"Esse baú tem pelo menos duzentos anos, moço. O chaveiro, que disse prestar serviço para as lojas de móveis usados e antiquários do centro do Rio, parecia saber o que estava falando. Um baú do século XVIII, em bom estado de conservação, deveria valer uma pequena fortuna, ele ficou pensando. Abriu com cuidado e se deparou com uma quantidade enorme de documentos, cartas, fotografias, alguns livros de capa de couro, papéis mofados. A umidade destruíra grande parte do que havia ali. Trataria de salvar o que pudesse. Separou os volumes e começou a cuidar da papelada. Numa primeira vista, as fotografias pareciam cobrir muitos anos de história, algumas mais recentes e outras, pelo estado de desbotamento, denunciavam-se como muito antigas. Nas fotos, a imagem recorrente de algumas mulheres. Nas mais recentes, muito provavelmente, a figura de Dona Isabel de Almeida. [...] Ainda numa primeira avaliação do material, ficou evidente cobrir períodos amplos e distintos de tempo. A impressão que se lhe fixava era tratar-se de um acervo familiar que cobria algumas gerações, três ou quatro talvez. [...]" - Rio de Janeiro, Março de 1973 (p. 127)
Pode ser que a vida seja mesmo "um inventário onde os dias herdam nossos desejos não satisfeitos, nossos sonhos mortos, nossas esperanças desfeitas", como pensava Salvador após a morte de Isabel, sua mãe afetiva, ou, quem sabe, "uma sucessão de desaparecimentos, uma grande coleção de fantasmas, de ruínas, de coisas que se perderam no tempo e que vão se acumulando dentro da gente, como entulhos" segundo as reflexões de Moisés, mas, uma coisa é certa, somos um só povo no mundo, todos sonhamos e sofremos igualmente e o que nos une é o mar, nesta aventura que é a passagem do tempo, a travessia deste Grande Mar Oceano.
Sobre o autor: Leonardo Almeida Filho (Campina Grande, Brasil, 1960), professor universitário, escritor, compositor e mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002). Entre suas obras publicadas estão Graciliano Ramos e o mundo interior, o desvão imenso do espírito (Editora da UnB, 2008); O livro de Loraine (romance, Imprell, 1998), logomaquia um manefasto (híbrido, do Autor, 2008); "O jantar no Lido" em Catálogo de benefícios, o significado de uma homenagem (Hinterlândia, 2010); Nebulosa fauna & outras histórias perversas (contos, e-galáxia, 2014); Babelical (poesia, Patuá, 2018) e, em 2019, o romance Nessa boca que te beija, também pela editora Patuá.
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