Lilia Guerra - Rua do Larguinho

Literatura brasileira contemporânea
Lilia Guerra - Rua do Larguinho e outros descaminhos - Editora Patuá - 416 Páginas - Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação de Leonardo Mathias - Lançamento: 2021.

O mais recente lançamento de Lilia Guerra segue a fórmula muito bem realizada no seu livro anterior, Perifobia, ou seja, alguns textos podem ser lidos de forma independente como se fossem contos, contudo as ligações entre as mesmas personagens compõem uma trama apoiando a narrativa principal do romance que, neste caso, tem como base a linda história de Domênica, desde os anos 1980, Cata-Vento como era chamada pela avó, Pití barriga d'água pela criançada do bairro ou simplesmente Pití quando adulta. Uma história semelhante a de tantas outras mulheres negras excluídas, sobrevivendo nas comunidades carentes dos grandes centros urbanos brasileiros.

Em Rua do Larguinho e outros descaminhos, a autora recria um universo inspirado na periferia da cidade de São Paulo com lirismo e emoção para dar vida a essas personagens fortes que emocionam porque são dolorosamente reais e reconhecíveis, provando que a dignidade humana resiste na busca de algum resto de felicidade possível, mesmo sabendo como "é curta a vida das flores depois que são colhidas". Lembra as letras dos sambas que ela utiliza nas epígrafes, clássicos da música popular interpretados por Beth Carvalho, Alcione, Alaíde Costa, Elza Soares, Carmem Costa, Clementina de Jesus e muitas outras.

"Pequenina, Bigu ia sentada no carrinho de amolar que o avô empurrava debaixo de sol, garoa ou vento. Crescidinha, acompanhava o velho na caminhada. Aprendeu logo a tomar conta do negócio. A fazer troco e separar encomenda. Matriculada no primário, detestou a escola. O agasalho gasto da caixa de doação, a pesada mala antiga que seu Genuíno encontrou no lixo numa de suas andanças, a separação do avô durante o período da aula... todas essas coisas a afligiam. tinha também Georgiana. A menina de longas tranças louras e olhos azuis. Metida num uniforme novo em folha, se exibia com seus lápis bem apontados e cadernos forrados de xadrezinho. A mestra trazia a lourinha em excessivo chamego. Era toda elogios para qualquer gesto de sua favorita. Mas, atrás dos óculos enormes, seus olhos chispavam faíscas para qualquer suspiro de Bigu. A repreendia sempre que havia oportunidade. Bigu se sentava encolhidinha num canto, no fundo da sala, tentando ficar invisível. [...]" - Trecho de Bigu (p. 30)

A amizade de Pití e Bebete ao longo dos anos emociona o leitor que se surpreende ao perceber um mundo tão distante e ao mesmo tempo tão próximo. Mulheres que têm a infância abreviada, abandonadas pelas famílias e os próprios companheiros, sem apoio de políticas públicas ou da religião oficial, a impossibilidade de uma educação formal e a consequente ausência de oportunidades profissionais, os abortos ilegais. Enfim, mulheres comuns como a empregada doméstica Sá Narinha que, já no final da vida, cumpre o martírio de ser usuária da linha Centro/FIm-do-Mundo e teima em ecrever coisas da memória nas páginas de um caderno.

"Compreendo. Poupar significa que endívias não são para o meu bico. Como se eu me importasse. Passo muito bem sem elas. Não quero mais ficar, Dona Gerda. Não quero, não, viu? Gerda nunca reparou na única coisa que desvio nesta casa. Os livros do escritório do falecido. Cada título tão bom. Leio com a porta trancada, até pegar no sono. No quarto de empregada não tem televisão. E eu nem faço questão. Troquei a lâmpada vagabunda do abajur por outra bastante potente. Terminando um volume, começo outro na mesma noite. Dois ou três cativeiros antes deste, servi a um velho escritor que possuía uma biblioteca fantástica. Era um martírio resistir ao desejo de manusear os livros, dispostos por assunto. [...] Quando ele se sentava à máquina de escrever, eu procurava não fazer barulho algum. Me emocionava saber que as palavras estavam nascendo. Ele era Deus, operando milagres. Criando mundos, pessoas, Decidindo destinos. [...]"- Trecho de Sá Narinha (p. 200)

Talvez o maior mérito na composição dessas histórias esteja no realismo e multiplicidade das vozes, buscando escapar da simples vitimização ou, por outro lado, da romantização das personagens transformadas em "guerreiras", como bem destacado por Giovanna Dealtry, professora de Literatura Brasileira da UERJ na apresentação do livro. De fato, Lilia Guerra consolida a sua posição na literatura brasileira contemporânea com um estilo original e necessário para dar voz a essas pessoas excluídas e invisíveis para a sociedade, que têm a sua existência limitada apenas a um inconveniente exercício de sobrevivência.

"– Igreja não é lugar pra bastardos. Quando você nasceu, fui bater à porta do padre pra saber como é que fazia pra te batizar. Sempre ouvi dizer que, criança que morre pagã, não vai para o céu. E você era um cisco. Miudinha de tudo. Ele perguntou meu nome. Respondi: Altamiranda. Perguntou se eu estava sozinha. Disse que eu precisava fazer inscrição para o seu batismo em companhia de meu marido. Repondi que não era casada. O padre me mandou voltar depois de casar e ter um documento que comprovasse o casamento. Ele não sabia que teu pai já era casado com outra. Que me prometeu tanta coisa, mas quando soube que eu te esperava, sumiu do meu caminho. Uns meses depois da minha visita ao padre, você teve uma febre. Amoleceu nos meus braços. Revirou os olhos. Era a morte te rondando. [...] O hospital era longe demais. Entrei numa viela. Ventava como eu nunca tinha visto. Passei por um escadão. Lá embaixo, num abismo, avistei a luz fraca. Ouvi cantoria e desci numa carreira. A porta estava aberta. Foi onde encontrei auxílio. Uma mulher te tomou do meu colo e outra me amparou. Durante uma semana nos acolheram. Até que você se fortaleceu. O perigo passou. Mãe Jurema e Siá Rosália, Cassiana. Me disseram que, o dia em que a febre lhe tomou, era consagrado à Santa Bárbara, que é Iansã. Senhora da Ventania. E que a ela clamaram para que te acudisse. Te envolveram num manto vermelho. Assim que soube, pedi pra que Iansã te batizasse. Ela é que é tua madrinha, Cassiana. Minha comadre, a quem tenho sempre recorrido quando carecemos de auxílio." - Trecho de Cassiana (pp. 300-302) 

Sobre a autora: Lilia Guerra é paulistana e ariana, nascida em abril de 1976. Em 2014, publicou o romance Amor avenida pela Editora Oitava Rima. Contribuiu com as coletâneas Contos & causos do Pinheirão e Taras, Tarô e Outros Vícios com os coletivos Armário do Mário e Palavraria, respectivamente. Participou de oficinas e ateliês literários e atualmente dedica-se à confecção de contos. Em 2018 lançou Perifobia pela Editora Patuá - finalista do Prêmio Rio de Literatura 2019.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Rua do Larguinho de Lilia Guerra

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