Lilia Guerra - Perifobia

Literatura brasileira contemporâneaLilia Guerra - Perifobia -  Editora Patuá - 308 Páginas - Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação de Leonardo Mathias - Lançamento: 2018. 

Perifobia! O neologismo do título já oferece uma pista sobre os temas desenvolvidos por Lilia Guerra nesta compilação de narrativas curtas. A combinação de duas palavras existentes – periferia e fobia – cria uma nova expressão para um sentimento recorrente de preconceito, aversão ou até mesmo indiferença, demonstrado por grande parte da sociedade frente à população crescente de excluídos nas comunidades carentes dos grandes centros urbanos brasileiros. 

A falta de espaço na literatura contemporânea para dar voz a essas pessoas que têm a sua existência limitada apenas a um teimoso exercício de sobrevivência – salvo raras exceções em autores como Luiz Ruffato e Marcelino Freire – só demonstra que a tal fobia existe mesmo, ajudando a perpetuar um eterno estado de injustiça social. Este livro nos coloca do lado de dentro deste universo e, apesar dos difíceis conflitos que os personagens enfrentam no seu cotidiano, a escrita de Lilia Guerra transborda de lirismo e emoção como as letras de sambas que ela utiliza como epígrafe.

Para esses personagens fortes, principalmente as mulheres, existe apenas a resignação de uma felicidade pequena e possível em meio à pobreza, violência e falta de perspectivas de uma vida mais digna. Os contos podem ser lidos de forma independente, contudo o leitor logo vai perceber as ligações entre os mesmos personagens que vão sendo reveladas aos poucos, fazendo com que o conjunto de narrativas isoladas se transforme em um romance, um processo muito peculiar e original que demonstra habilidade na condução das histórias que se cruzam. Por este motivo, aconselha-se ler os contos na ordem sequencial em que são apresentados.
"Acordei e ele estava em minha cama. Chovia. Ouvi o barulho dos pingos e acompanhei a marcha úmida se alastrando pelas telhas e paredes de bloco sem reboco. Levantei e coloquei um balde perto da mesa, onde uma goteira trabalhava com eficiência. Pus água no fogo para fazer café, cheguei perto da janela, acendi um cigarro e fiquei espiando a enxurrada barrenta correr morro abaixo. Pouca gente na rua. Dona Zezé arrastava o neto. O menino, miúdo demais para a idade, ia para a escola e usava um uniforme onde cabiam dois dele. Ela improvisou uma espécie de capa de chuva com um saco de lixo e colocou sacolas plásticas em volta dos sapatos do pequeno, mas seus próprios pés estavam desprotegidos, calçados nuns chinelos velhos com uma correia de cada cor e iam escorregando ladeira afora. Levava um guarda-chuva remendado e equilibrava o cachimbo no canto da boca." - Rascunho de Amaro (p. 15)
"Toda promessa tem prazo de validade" como nos ensina Isabel, uma das protagonistas mais fascinantes do livro no seu "Manual prático de sobrevivência para crianças que lidam com cafajestes". Abandonada pela mãe e morando desde pequena na casa dos patrões da avó, empregada doméstica durante muitos anos na mesma família, ela aprendeu desde cedo a escapar dos assédios sexuais do velho patriarca, assim como "entrar muda e sair calada" dos ambientes da casa. Em cada um dos contos conhecemos uma etapa diferente da sua trajetória de vida e da avó, um longo e doloroso aprendizado formado por pequenas conquistas.
"Ele me sentava no colo e procurava as balas bem devagar. alisava meu cabelo e beijava meu rosto, mas não fechava os olhos, como fazia com a esposa. Eu tinha uns sete anos quando comecei a perceber que aqueles carinhos me causavam enjoo. Com o tempo, os agradecimentos foram ficando mais intensos. Os beijos cada vez mais próximos da minha boca e as mãos passando por dentro do meu vestido. Os enjoos aumentavam com a mesma intensidade com que crescia a ousadia do calhorda, e quando eu já não suportava, me desvencilhava das garras dele, ia correndo pro banheiro e vomitava tudo o que tinha no estômago. Não aliviava nada." - Entre roseiras e jabutis (p. 43)
As histórias de Lilia Guerra fazem parte de um mundo próximo e, ao mesmo tempo, distante. Personagens fortes que nos emocionam porque são dolorosamente reais e reconhecíveis, provando que a dignidade humana resiste, apesar de tudo, e não pode ser arrancada, mesmo nas piores condições. Quem sabe, um dia, tudo isso se torne apenas ficção. Até esse dia chegar, vamos precisar de mais livros como Perifobia e também saber que é preciso continuar vivendo, "rir para não chorar" como no clássico samba de Cartola.
"No meio da festa, ninguém reparou quando um maluco chegou por trás e deu o primeiro. Silenciador e aquela zorra toda. Leleco caiu pra frente, agarrou Pinguinho, que ficou feliz da vida com o abraço, mas sabia que aquilo não era do feitio do mano. E sentiu logo o líquido quente empapando tudo. Mais dois, pra garantir. O matador evaporou. Leleco olhou pra dentro de Pinguinho. Sem palavras, dizia obrigado. Pelos pães de açúcar no recreio, pela mãe emprestada de vez em quando, por ser seu irmão. Até que tudo ficou muito, muito escuro."Mingau futebol clube (p. 206)
Sobre a autora: Lilia Guerra é paulistana e ariana. Abril de 1976. Em 2014, publicou o romance 'Amor avenida' pela Editora Oitava Rima. Contribuiu com as coletâneas 'Contos e causos do Pinheirão' e 'Taras, Tarô e Outros vícios' com os coletivos 'Armário do Mário' e 'Palavraria', respectivamente. Participou de oficinas e ateliês literários e atualmente dedica-se à confecção de contos. Contos, contos e mais contos.

Comentários

sonia disse…
Qual a diferença entre o texto condensado (o conto) e o leite condensado? É que o primeiro não enjoa!

Postagens mais visitadas deste blog

As 20 obras mais importantes da literatura japonesa

As 20 obras mais importantes da literatura francesa

20 grandes escritoras brasileiras

As 20 obras mais importantes da literatura brasileira

As 20 obras mais importantes da literatura dos Estados Unidos

As 20 obras mais importantes da literatura portuguesa