Sidney Garambone - Fausto Tropical

Literatura brasileira contemporânea

Sidney Garambone - Fausto Tropical - Editora 7Letras - 264 Páginas - Capa de Alice Garambone -  Introdução de Pedro Bial - Lançamento: 01/04/2019.

Um dos personagens mais recorrentes na literatura universal, o Demônio (sim, ele mesmo, o príncipe das trevas) permanece inspirando até hoje ótimos contos e romances. Johann Wolfgang von Goethe publicou a primeira parte do longo poema Fausto, uma tragédia em 1808 com base em uma antiga lenda alemã, esta obra foi revisitada em 1947 por Thomas Mann com o romance Doutor Fausto, que ganhou conotações políticas e históricas devido ao conturbado período da Segunda Grande Guerra. O mito de Fausto acabou chegando até o nosso genial Guimarães Rosa que soube expressar no épico Grande sertão: veredas o impasse metafísico entre o bem e o mal, enfrentado pelo protagonista e narrador Riobaldo, ex-jagunço, na forma de um suposto pacto com o Diabo em pleno sertão brasileiro.

Neste seu segundo romance, Fausto Tropical, Sidney Garambone enfrenta o desafio de retomar o tema clássico, apresentando uma versão moderna e bem-humorada de Lúcifer que declara não ter interesse em comprar almas, simplesmente porque elas não existem. Sinal dos tempos? É difícil imaginar um local mais apropriado para uma nova aparição de Satanás, neste início de século XXI, do que o Rio de Janeiro, tão bem definido por Fernanda Abreu como uma “cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”. Esse é o cenário em que o autor carioca imaginou o improvável encontro do histórico Mefistófeles com o decadente protagonista, o escritor Victor Vaz, botafoguense de coração (como este resenhista que vos escreve), solitário após uma separação traumática e com saudade da filha pequena, tudo isso resultando em um permanente estado de crise existencial.

A narrativa é feita em primeira pessoa pelo sofrido Victor Vaz que, como se não bastassem os problemas acima, ainda é ignorado pelos velhos amigos, inclusive a ex-namorada Paulina, após ter revelado detalhes da convivência do grupo em seu mais recente romance, traindo a confiança de todos. Ele se encontra, portanto, fragilizado e em um estado mais do que suscetível para o assédio do sobrenatural quando, após a sua visita mensal a um puteiro em Copacabana – procedimento decorrente do seu estado de solidão assumida – encontra, sentado no assento do carona do seu fusca, ninguém menos do que o autodeclarado Demônio que ele prontamente imagina ser um assaltante ou mais um lunático, uma vez que Victor não tem qualquer tendência religiosa como podemos comprovar no seguinte trecho:
“Sempre fui um católico revoltado. Jamais gostei dos ritos da Igreja, do senta e levanta das missas, do histórico medieval e dos erros mastodônticos que vários papas cometeram. Fiz primeira comunhão, fui crismado e carrego a famosa culpa cristã. Cometo alguns pecadinhos, nunca me confessei nem me confessarei com padre algum e me flagro temendo de alguma forma o Juízo Final. A relação da minha fé com Deus é amistosa. Gosto dos santos. Muitas vezes nomeio um para anjo da guarda e credito a ele meus sucessos e fracassos. Dos clérigos desconfio. Não me empolguei a consultar nenhum a propósito destes recentes encontros satânicos. Imaginei o horror de qualquer sacerdote ao saber destes meus encontros. E quantos terços eu teria que rezar a mando deles. É impressionante a força das palavras. O divino lembra contemplação e paz. O diabólico associa-se ao quente, ao perigoso, ao risco.” (p. 81)
Os diálogos entre Victor Vaz e o seu interlocutor de tão variados nomes, são sempre permeados por referências a obras literárias e clássicos do cinema, enquanto discutem questões filosóficas e metafísicas, transitando por vários pontos turísticos do Rio e até mesmo da Europa, na pequena cidade de Cagliari na Sardenha por exemplo (não há limites para o tinhoso) onde conhecem detalhes da história de um santo cristão italiano chamado Lucifero do século IV.  A linha principal de raciocínio é de que não há o Bem e o Mal, e sim a Verdade e a Mentira, sendo que a Mentira não é uma prerrogativa do Demônio, mas sim do seu antagonista (Deus), como explicado nas passagens abaixo:
"[...] Deus não é mentiroso, Deus aceita a Mentira como a ideologia humana de vida. Deus vestiu-se da incrível capacidade de aceitar a Mentira diária em todos os níveis, em todos os povos. Teve a clarividência, vá lá, divina, de perceber que a falsidade, as meias palavras, o dito pelo não dito, o cinismo, a falácia, o sofisma, o descompromisso, a promessa vazia são o modus operandi do homem. E ele, Deus, abre os braços para tudo isso. Aceita tudo isso. Deus foi mais inteligente do que eu. [...] Vocês não suportam a verdade. Nas minhas primeiras andanças, eu preguei a Verdade. Reuni camponeses, mostrei como havia fingimento na relação entre vizinhos, como o interesse próprio justificava as vilanias, a razão técnica da colheita ser um fracasso, a incompetência dos filhos no arado. Pequenos exemplos que me chegam à memória. Afastaram-se todos. Todos, Victor. Fui testemunhando ano a ano, década a década, o crescimento da fé em Deus, as metáforas absurdas que eram aceitas por todos, os mitos, os milagres, os ritos sendo mais importantes que a ideia." (p. 168)
No decorrer do romance, a relação entre o protagonista e seu novo parceiro ganha um caráter de amizade e confiança. Afinal, se não existe o interesse em um pacto pela alma de Victor, qual a intenção desse encontro inusitado nos trópicos? O leitor certamente se surpreenderá ao descobrir o quanto de humano existe neste mítico ser do mal e vice-versa.

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Sidney Garambone é carioca. Formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). Trabalhou na mídia impressa nos jornais “Tribuna da Imprensa”, “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo” e na revista “IstoÉ”. Está na “TV Globo” desde 1999, na qual foi chefe de reportagem, editor-chefe do telejornal “Globo Esporte” e, desde 2007, comanda o “Esporte Espetacular”. Atualmente é editor de Qualidade e Projetos Especiais da Globo. Como escritor, publicou “O caçador de barangas” (7Letras), “A Primeira Guerra Mundial e a Imprensa Brasileira” (Mauad), Eu, Deus (Record) e “Os 11 maiores volantes do futebol brasileiro (Contexto). “Fausto tropical” (7Letras) é seu segundo romance. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As 20 obras mais importantes da literatura francesa

As 20 obras mais importantes da literatura japonesa

As 20 obras mais importantes da literatura dos Estados Unidos

20 grandes escritoras brasileiras

As 20 obras mais importantes da literatura brasileira

As 20 obras mais importantes da literatura portuguesa