Toni Morrison - Sula
Sula, lançado originalmente em 1974, é o segundo romance de Toni Morrison (1931-2019), prêmio Nobel de Literatura de 1993, depois do clássico O olho mais azul (1970). Por sinal, toda a bibliografia da autora é considerada hoje um patrimônio da literatura norte-americana e mundial, tendo sido reconhecida por uma lista considerável de prêmios que culminaram em 2017 com a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta honraria civil nos EUA, nivelando Morrison a escritores importantes do passado como: T. S. Eliot, John Steinbeck, Tennessee Williams e Maya Angelou, outra grande ativista da causa da integração racial no país.
Apesar da importância política da obra de Toni Morrison, os romances merecem ser apreciados principalmente pela beleza e força incomparável do texto. A própria autora comenta no prefácio desta edição sobre a questão do valor estético em confronto com a responsabilidade política e social da obra de arte: "O que poderia haver de tão ruim em ser socialmente perspicaz, politicamente consciente na literatura? A crença comum é de que ficção política não é arte; que é menos provável que uma obra assim tenha valor estético porque política – a política como um todo – é plano de ação e, portanto, sua presença macula a criação estética."
Em Sula, a narrativa acompanha três gerações de mulheres negras no vilarejo de Medallion, Ohio, cobrindo o período de 1919 até 1965, iniciando com a matriarca Eva Peace, avó de Sula, uma personagem fabulosa, abandonada pelo marido com três filhos e que recebe o seguro da companhia ferroviária pela automutilação de uma das pernas, um fato apenas insinuado no romance e que será a base para a sobrevivência econômica de toda a família e descendentes. Hannah, mãe de Sula, é a filha mais velha de Eva e, depois da morte prematura do marido, assume uma postura de liberdade sexual incompatível com os padrões de comportamento da época.
"Hannah exasperava as outras mulheres da cidade – as mulheres 'de bem', que diziam, 'Uma coisa que eu acho insuportável é mulher indecente'; as prostitutas, que já achavam difícil fazer negócio com os homens negros e se ressentiam da generosidade de Hannah; as mulheres a meio caminho de uma coisa e outra, que tinham tanto maridos como amantes, pois Hannah parecia muito diferente delas, já que não tinha paixão vinculada às suas relações e era totalmente incapaz de sentir ciúme. As amizades femininas de Hannah eram, claro, raras e breves, e os recém-casados que a mãe acolhia logo descobriam o perigo que ela era. Podia romper um casamento antes que se concretizasse – ela fazia amor com o recém-casado e lavava a louça da esposa, tudo numa tarde só. O que ela queria, depois que Rekus morreu, e o que conseguia obter na maioria dos casos, era algum contato físico todos os dias." (p. 55)
No entanto, o foco principal da narrativa se concentra na trajetória de Nel Wright e Sula Peace, uma história que tem origem na relação de amizade durante a infância e adolescência, mas que se transforma em ódio na maturidade. Nel tem um casamento adequado aos conceitos de moralidade da sociedade local, já Sula abandona a família para estudar e levar uma vida independente. Quando Sula retorna à cidade, dez anos depois, torna-se uma pessoa criticada, devido ao seu comportamento libertário e desafiador mas, apesar de tudo, ainda persiste uma forte ligação entre elas, assim como um terrível segredo do passado.
"Cabacinhos. A palavra estava na cabeça de todos. E um deles, um dos jovens, disse aquilo em voz alta. Com suavidade mas firmeza e não havia como entender mal o elogio. O nome dele era Ajax, um jogador de bilhar de vinte e um anos e beleza sinistra. Gracioso e econômico em todos os movimentos, ocupava um posto invejado por homens de todas as idades por sua boca magnificamente imunda. Na verdade, era raro que praguejasse, e os epítetos que escolhia eram sem graça, até mesmo inofensivos. Sua reputação derivava do jeito como lidava com as palavras. Quando dizia 'inferno', enunciava o f com os pulmões e o impacto era maior do que as façanhas da boca suja mais criativa da cidade. Ele dizia 'merda' com uma sordidez impossível de imitar. Portanto, quando disse 'cabacinhos' enquanto Nel e Sula passavam, elas baixaram os olhos para que ninguém visse o deleite que sentiam." (p. 60)
Em uma obra rica em simbolismos, Toni Morrison escreve sobre o poder da amizade frente aos desafios impostos às mulheres negras em uma sociedade patriarcal e racista que não oferece outras opções fora do modelo imposto pelos homens. As personagens, Eva, Hannah, Sula e Nel, têm perfis psicológicos complexos que constantemente oscilam entre o bem e o mal em camadas que vão sendo apresentadas ao leitor muito sutilmente. Um livro fascinante e, após quase cinquenta anos de sua publicação, ainda moderno e desafiador, vale muito a pena conhecer.
"Deitada na ala do hospital destinada às pessoas de cor, que era um canto telado de uma ala maior, Eva refletia sobre a perfeição do juízo contra ela. Recordou-se do sonho do casamento e lembrou que os casamentos sempre significavam morte. E o vestido vermelho, bem, esse era o fogo, ela deveria saber disso. Lembrou-se também de outra coisa, e por mais que tentasse negar sabia que, quando estava deitada no chão tentando se arrastar por entre as ervilhas-de-cheiro e os trevos para alcançar Hannah, tinha visto Sula parada no alpendre do quintal, só olhando. Quando Eva, que nunca foi de esconder os defeitos dos filhos, mencionou o que acreditava ter visto a alguns amigos, eles disseram que era natural. Sula provavelmente emudecera de susto, como aconteceria com qualquer um ao ver a própria mãe pegar fogo. Eva disse que sim, mas por dentro discordava e continuava convicta de que Sula tinha ficado olhando Hannah queimar não porque estivesse paralisada, mas porque estava interessada." (p. 86)
Sobre a autora: Toni Morrison nasceu em 1931, em Ohio, nos Estados Unidos. Formada em letras pela Howard University, estreou como romancista em 1970, com O olho mais azul. Em 1975, foi indicada para o National Book Award com Sula (1973), e dois anos depois venceu o National Book Critics Circle Award com Song of Solomon (1975). Amada (1987) lhe valeu o prêmio Pulitzer. Foi a primeira escritora negra a receber o prêmio Nobel de literatura, em 1993. Aposentou-se em 2006 como professora de humanidades na Universidade de Princeton. Morreu em 2019, aos 88 anos.
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