Leandro Machado - Kaapora

Literatura brasileira contemporânea
Leandro Machado - Kaapora - Editora Nauta - 112 Páginas - Imagem de capa: fotografia de Bruno Walter Caporrino - Lançamento: 2024.

Leandro Machado reafirma a força da literatura paraense em Kaapora, sua obra de estreia, ao enfrentar de modo contundente alguns dos problemas contemporâneos da região amazônica e de sua população, além da urgente necessidade de preservação ambiental. O romance segue o caminho iniciado por Edyr Augusto, cujo trabalho alcançou projeção nacional após a adaptação de Pssica em uma minissérie brasileira produzida pela Netflix e dirigida por Fernando Meirelles. Em Kaapora, temas igualmente perturbadores ocupam o centro da narrativa: a ação dos chamados ratos d’água — piratas violentos que dominam os rios amazônicos — envolvidos no tráfico de óleo diesel, em assaltos a residências, na exploração sexual de menores e em articulações obscuras com políticos locais.

Kaapora, ou caipora, remete a uma entidade do folclore brasileiro de origem Tupi-Guarani, tradicionalmente associada à defesa dos animais selvagens e da natureza, mas também usada popularmente para designar alguém marcado pela má sorte. Essa ambiguidade parece refletir o destino do núcleo familiar que compõe o romance. No capítulo inicial, encontramos Valdeci, conhecido como Catita, envolvido no planejamento de um assalto junto à quadrilha liderada por seu tio Mucuim. Recuando no passado, a narrativa conta a trajetória dos pais de Catita, Diabo do Rio e Josefa, além do destino trágico de sua irmã Vânia, sequestrada por uma rede clandestina de exploração sexual. Todos ligados a um mesmo ciclo de violência e precariedade do qual não conseguem escapar.

"Valdeci morava com a mãe no rio Tajaporú, em Breves. Até três meses trás ainda a visitava, mas parou de ir quando passou a ter que se entocar no mato. A história do seu nascimento parece até mentira de caboclo. Foi um parto sofrido na casa de palha velha, um dia depois do eclipse lunar. A velha parteira, bem que avisou que não era um bom sinal. O pai morreu pouco tempo depois dele nascer. Izomar, vulgo Diabo do Rio, como a polícia o chamava. Assaltava embarcação de carga que passava em Breves. Morreu numa operação que envolveu a polícia do estado. Valdeci diz que deixou a escola para virar pirata quando a irmã Vânia de treze anos desapareceu e só foram encontrados vestígios de seu sumiço alguns meses depois, quando viralizou um vídeo dela sendo exibida nua na embarcação do Carvalho. Deu muito o que falar por um tempo, e a polícia e o conselho até se locomoveram para marcar uma presença tímida na região, visitando a casa e interrogando a mãe. Valdeci nunca entendeu essas conversas, afinal, não era para procurarem o Carvalho? Pelo fim, não deu em nada, a irmã nunca mais apareceu novamente. Ele jurou que iria matar o Carvalho. Sonhava no dia em que iria encontrá-lo. Não iria meter-lhe uma bala, isso iria ser rápido demais; iria era cortá-lo todo com o terçado. Esse era o sonho da sua vida de caboclo." (pp. 15-6)

Com uma agilidade narrativa quase cinematográfica, que revela segurança na condução da trama e diálogos convincentes, Leandro Machado enfrenta a brutalidade de sua história sem perder, entretanto, o vínculo com a mitologia e a ancestralidade da floresta, sempre presentes na cultura amazônica. O resultado é um romance que, ao mesmo tempo em que denuncia a precariedade social e a corrupção política, evoca o imaginário ancestral como contraponto e resistência, transformando a floresta em mais um personagem vivo e não apenas cenário.

"O bando colocou o capuz e rasgou o centro no rabudo. Quatro demônios correndo pelo rio escuro do Marajó. O Teixeirão apareceu cruzando a dobra, ia jogando o farol na água, mas o quarteto fugiu das luzes pelas laterais distantes. Eles já haviam feito isso inúmeras vezes. O navio fazia muito barulho no motor, ninguém percebeu a investida por trás. [...] Leco, com uma corda grossa amarrada num peso em formato de gancho, jogou-o em direção ao barramento do navio e acertou de primeira. Era perito nessa arte. O rabudo encostou, a onda grossa que saía das palhetas foi vencida facilmente, e ele atracou, subindo em seguida. Tracuá repetiu o processo, em sincronia, do outro lado, e quem subiu primeiro foi o Diabo, seguido dos outros dois, um de cada lado. As redes no primeiro piso estavam todas quietas, até que uma mulher saiu de dentro do banheiro com uma criança de colo. Diabo agarrou os dois, jogou no chão, mirou a boca da espingarda e anunciou: — Levanta, seus filho da puta! Chegou o caralho!" (pp. 50-1)

Uma estreia potente do jovem autor marajoara, que nos convida a mergulhar na riqueza da diversidade cultural do nosso país e a compreender uma prioridade óbvia: não pode haver consciência ambiental sem justiça social para a população local. O romance de Leandro Machado é valorizado por uma prosa rica em lirismo e simbolismo que revela um talento literário promissor, mas também uma visão crítica de um Brasil profundo, marcado por tensões e realidades que ainda permanecem desconhecidas para grande parte dos leitores.

"Foi no arraial de Santana, em Breves, que tudo começou. Até a cidade, eram três horas de viagem saindo do Vira-Saia. Viajou no barco do pai, na época em que este ainda era vivo. Tomava todo o cuidado do mundo para enrolar o longo cabelo preto que lhe descia até o quadril, temendo o rolo do motor. Conhecia bem o perigo das águas, mas não muito daqueles da superfície. Quando colocou os pés no porto, soltou os cabelos do prendedor, caindo sobre os ombros e braços manchados de melatonina e do sol, como um encontro de dois rios distintos que se banham. Naquela tarde, percorreu a rua de terra grossa acompanhando a imagem da santa, até o retorno para a igreja matriz. Era a hora da festividade. Ali, então, entre os fogos que relampeavam no céu e o vozerio que baixava no arraial, sentiu-se daquela forma esquisita que não se explica, algo como um olhar penetrante por entre a selva de gente. Quando achou o olhar, vacilou no encontro, abaixando a cabeça, mas quando levantava novamente na direção, os olhos de lá mantinham-se firmes nela, feito duas tocas escuras, um buraco de surucucu. — Ei, morena, bora se conhecer?" (pp. 92-3)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Leandro Machado é um autor marajoara da cidade de Breves, no Pará. É formando em Letras pela UFPA - CAMPUS MARAJÓ. Possui poemas e artigos publicados em revistas literárias da USP, UFPA, UFRN, além de diversos contos autorais. Suas influências de escrita perpassam por diversos signos, como filosofia, cinema, música heavy metal e literatura paraense.

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