Luiz Schwarcz - Ensaio de memória

Literatura brasileira contemporânea
Luiz Schwarcz - O primeiro leitor: Ensaio de memória - Editora Companhia das Letras - 304 Páginas
Capa: Alceu Chiesorin Nunes - Lançamento: 2025. 

O mais recente lançamento do editor e escritor Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, é uma obra que mescla ensaio literário e livro de memórias. Com uma narrativa fluida e envolvente, Schwarcz compartilha reflexões sobre o universo dos livros e os bastidores do mercado editorial, ao mesmo tempo em que revisita sua trajetória profissional e episódios curiosos vividos com outros editores que marcaram época no Brasil, como Caio Graco Prado e Jorge Zahar, além de autores célebres que ajudou a publicar, como Susan Sontag, Rubem Fonseca, Amos Oz, Oliver Sacks, Jô Soares e José Saramago. Trata-se, portanto, de uma autobiografia pouco usual, na qual Schwarcz não se coloca como protagonista, mas como testemunha e interlocutor. 

Não deixa de ser curioso que Schwarcz, conhecido por sua personalidade reclusa, tenha se aventurado nesta empreitada memorialística. Contudo, cercou-se de alguns cuidados: evitou mencionar autores brasileiros vivos e se absteve de comentar sobre editoras nacionais em atividade. A narrativa tem início com a sua experiência como estagiário na Editora Brasiliense, no final da década de 1970, época na qual os planos de se tornar um professor de sociologia foram abandonados para seguir, quase por acaso, uma profissão fascinante e desafiadora, principalmente em um país que não prioriza a educação e cultura. Cada livro é um produto único que exige um longo tempo de maturação de uma equipe que inclui não somente o editor, mas também o tradutor, o responsável pelo design e um departamento forte de marketing e divulgação. 

"Em razão da minha desenvoltura na relação com os jornais e revistas, mais tarde, na Companhia das Letras, serei acusado, por editores que eu respeitava profundamente, de ser melhor divulgador do que editor. Confesso que isso me feriu bastante, mas aos poucos fui me acostumando. A primeira leitura e edição dos textos sempre foi meu trabalho predileto, e talvez o meu forte. O fato de eu ter tido êxito comercial e dar importância também ao marketing e divulgação levava alguns dos grandes profissionais brasileiros - que sempre ligaram o trabalho editorial com o velho sentido de missão - a deixarem de me ver como um bom editor. Esses famosos astros do livro cultivavam a ideologia do fracasso. No seu discurso ficava implícito: 'Sou um grande editor, logo, naturalmente, não sei ou não vou me ocupar com marketing e divulgação'. Ou ainda: 'Não sei administrar empresas, afinal é por isso que sou um grande editor'. Apesar de indubitavelmente geniais, tais 'mestres' nunca acharam que os problemas que suas editoras enfrentavam advinham da falta de profissionalização, e sobretudo do desprezo pelo trabalho de equipe. O sucesso, para eles, era uma mácula, embora sem confessar, eles o almejassem como todos nós. Caio não era assim. Tinha algumas visões arraigadas, mas, em geral, tendia sempre para a inovação e a ousadia. [...]" (pp. 54-5)

O livro apresenta curiosidades do mercado editorial como o faro para identificar originais que se tornaram grandes sucessos de vendas, além de obras que, ao longo da história da literatura, enfrentaram duras cartas de recusa ou de censura. Schwarcz também aborda a delicada relação com escritores consagrados — entre eles, o célebre rompimento com Rubem Fonseca e o desconforto que marcou sua convivência com o polêmico Paulo Francis — assim como a amizade com o poeta e tradutor José Paulo Paes. Ao longo das páginas, desfilam episódios que não apenas revelam os bastidores da atividade de edição e curadoria no Brasil, mas revelam experiências que enriqueceram uma trajetória profissional e pessoal guiada pelo amor aos livros.

"A meu ver, o leitor habita todo o espaço em branco de um livro. As bordas das páginas internas, em cima, abaixo e nas laterais - além do respiro entre as linhas, que denotamos entrelinha -, são os espaços que simbolizam graficamente a presença do leitor. A área em branco, ou aquela que não é ocupada pelo discurso autoral, tem quase a mesma importância num livro quanto aquela ocupada pela tinta do texto. É ali que está o leitor. Uma mancha (assim chamamos o espaço preenchido pelas letras numa página) muito opressora, absoluta, é, mais que feia, inapropriada, pois de modo indireto significa que a propriedade do livro, durante e após a leitura, não é compartilhada. Afirma peremptoriamente  que há apenas uma presença no livro, a do autor. Também uma entrelinha avarenta simboliza que o editor, com todo o seu poder, não foi capaz de reconhecer que, bem ao lado do enunciado dos escritores, é o local onde a imaginação dos leitores arma o seu terreno. Linhas muito próximas reforçam a supremacia autoral, deselegantemente." (p. 82)

Uma leitura deliciosa e envolvente, muito recomendada para quem deseja se aprofundar no universo da criação literária e compreender melhor os limites da intervenção editorial. Além de um relato profissional, o livro oferece a oportunidade de partilhar a intimidade de grandes nomes da literatura, revelando bastidores, confidências e momentos de uma vida dedicada aos livros, fico com uma das muitas definições de Schwarcz sobre a beleza da ficção que nos protege da realidade, resumindo a atividade do editor: "No fundo, somos fiscais do fingimento [...] No nosso dia a dia não entra em discussão se as narrativas ficcionais ou até algumas memorialísticas são baseadas em fatos reais ou não, mas sim se a ficção se sustenta com propriedade até o final."

"Sem planejar, por pura sorte, achei uma profissão que depende muito do silêncio. Ou, talvez, foi o silêncio dos livros que me capturou.A longa solidão que marca a prática literária confere uma profundidade e uma sinceridade à literatura que nem o mais fantasioso dos textos consegue evitar. Na primeira leitura de um original, o editor deve se relacionar com a essência do texto e entender as bases nas quais está erigido o livro. Nas raízes dessa leitura, ele deve se encontrar com a subjetividade do autor, e buscar a coerência da narrativa, nos mínimos detalhes. Passa então a defender o livro ferozmente. Age como um dublê do escritor, protegendo a obra, todo o tempo, mesmo que em contraposição a quem a criou. O que se requer do editor, nesse momento, é sensibilidade e empatia. [,,,] Na minha visão, ao dedicar a alma aos personagens, por longos meses, os escritores e escritoras transferem, inconscientemente, a eles suas próprias fragilidades. É essa a grande jogada da literatura: o encontro que se dará entre a vulnerabilidade dos escritores e seus personagens e a vulnerabilidade de seus leitores e leitoras. Por isso amamos os livros, por serem, fora dos divãs, o melhor espelho da nossa imperfeição." (pp. 95-7)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Luiz Schwarcz nasceu em São Paulo, em 1956. Fundou a Companhia das Letras em 1986. É autor dos livros infantis Minha vida de goleiro (1999) e Em busca do Thesouro da Juventude (2003), das coletâneas de contos Discurso sobre o capim (2005) e Linguagem de sinais (2010), O ar que me falta (2021) e O primeiro leitor (2025). Em reconhecimento por sua carreira, recebeu o Lifetime Achievement Award (2017), pela Feira do Livro de Londres, e o Prêmio Internacional Cesare De Michelis (2024), por sua contribuição à edição literária.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar O primeiro leitor: Ensaio de memória de Luiz Schwarcz

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