Marcelo Henrique Silva - Sangue neon

Literatura brasileira contemporânea
Marcelo Henrique Silva - Sangue neon - Editora Faria e Silva - 176 Páginas - Capa: Kalany Ballardin / Foresti Design - Lançamento: 2024.

Os primeiros capítulos do romance de estreia de Marcelo Henrique Silva, vencedor do Prêmio Alta de Literatura na categoria autor estreante, apresentam narrativas independentes, tanto na forma quanto no conteúdo, como se fossem contos. Ao longo do livro, porém, essas histórias se conectam por meio da figura central de Vera Lynn, uma travesti nordestina que, aos catorze anos, foge da violência doméstica e parte rumo a São Paulo em busca de sobrevivência e liberdade. Após anos de prostituição, ela conquista um sobrado no bairro do Bixiga e o transforma no Palácio das Princesas — um espaço de acolhimento e resistência que se tornaria o primeiro centro de apoio a pacientes com HIV no Brasil. A protagonista é inspirada na trajetória real de Brenda Lee, famosa travesti que se destacou nas décadas de 1980 e 1990 por sua atuação no enfrentamento da epidemia de AIDS no país.

Outros personagens, também inspirados em figuras reais que atuaram entre as décadas de 1970 e 1990, compõem o painel humano deste romance histórico, que retrata um período de profundas transformações na sociedade brasileira. Entre eles estão Caio e Pedro, comissários de voo que participaram do contrabando de medicamentos então proibidos no país, levando alívio e dignidade a pacientes desamparados em meio ao caos da epidemia. Há também Sara e Itamar, médicos que estiveram na linha de frente do combate à AIDS, contribuindo para os primeiros esforços de organização do atendimento público à doença e para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) — uma das maiores conquistas da saúde pública brasileira. Décadas mais tarde, esse mesmo espírito culminaria na decisão do governo de quebrar patentes de medicamentos, garantindo sua produção nacional e distribuição gratuita.

"a mãe sempre foi muito religiosa então com certeza sabia da parábola do filho pródigo e pode ser que ela pensasse nisso quando o viu com aquela mochilinha enganchada pela alça em apenas uma escápula do ombro, talvez tendo se lembrado daquele mesmo menino voltando ensopado da chuva após um dia de aula na segunda ou terceira série com os sapatos maculando um tapete da sala sempre muito bem aspirado e por isso fez cara de brava porque ele não havia trazido o boletim e também porque ele tinha um roxo em volta do olho e arranhões no pescoço mas ali, vinte anos depois, ela fez cara de brava porque é sinal de derrota para uma mãe abrir a porta a um filho com mochila nas costas em plena vida adulta, mesmo que isso trouxesse vida para ela, já que o rapaz afinal de contas tinha seu apartamento em são paulo e mesmo assim resolveu voltar para o rio de janeiro armado com um tal atestado de trinta dias prescrito por uma médica enquanto aguardasse o resultado, o diagnóstico, que ele já sabia qual era mas a mãe nem sonhava pois ele mentiu dizendo que havia só pegado alguns dias de folga porque queria ficar com ela, e também porque nunca que Caio se arriscaria contando a verdade, lembrando-se perfeitamente do dia em que saiu por essa mesma porta quando ela disse que sempre seria sua mãe mas que se ele pegasse aquela doença não precisava mais voltar [...]" (p. 77) - Trecho do Capítulo 06 - Espera

Nos primeiros anos da epidemia, tanto médicos quanto pacientes enfrentaram um cenário de incerteza, medo e abandono. O desconhecimento sobre a doença — que ainda não tinha nome científico definido e era vulgarmente chamada de “peste gay” — dificultava o diagnóstico e intensificava o preconceito. Sem testes laboratoriais confiáveis, protocolos de tratamento ou sequer um consenso sobre as formas de transmissão, os profissionais de saúde atuavam quase às cegas, muitas vezes isolados e estigmatizados junto aos próprios pacientes. Para os infectados, o diagnóstico era praticamente uma sentença de morte, agravada pelo estigma social que recaía especialmente sobre homossexuais, travestis, usuários de drogas e profissionais do sexo.

"Banana brincava com poses no espelho, tentando arrumar um cinto que combinasse com a mancha. Mas, depois da primeira, logo passaram a nascer outras e, em poucos dias, estava toda pintada por aquelas inúmeras marcas ulceradas, pretas, confluentes, no rosto, dentro da boca, no fundo dos olhos. Nem mesmo a maquiagem pesada conseguia esconder, por mais que aplicasse camadas de base cara. Não houve unguentos, cremes, encantos ou simpatias que as fizessem ir embora. Precisava sair para os programas usando roupas compridas, capuz e mangas que tapavam cada fração de sua pele infestada, arrancando risos das outras travestis, seminuas e empinadas. Elas a chamavam de assombração, espanta-clientes, expulsando-a dos pontos sob ameaças. Emagrecida, assustava até os pedestres. Os bofes sentiam nojo quando viam seu corpo esquálido e canceroso, rejeitando-a de forma constante, com agressões e ofensas. Nem mesmo se humilhando por preços ínfimos conseguia alguém que a quisesse. As convulsões se tornaram hábito corriqueiro como escovar os dentes: tinham hora e lugar. Quando começavam, as meninas já sabiam como fazer para proteger a língua enrolada na boca espumosa e os pontos vitais que se debatiam com força pelos móveis ao redor." (p. 95) - Trecho do Capítulo 07 - Idas

Com uma escrita potente, Marcelo Henrique Silva presta uma sensível homenagem a pessoas esquecidas pela história oficial, mas que participaram com coragem e dignidade de uma luta coletiva por saúde, cidadania e reconhecimento. Vale destacar, além do resgate histórico, a qualidade literária do texto, que mescla diferentes técnicas narrativas com notável criatividade e domínio estilístico — como o fluxo contínuo em terceira pessoa nos trechos do comissário Caio, especialmente no capítulo marcante de seu retorno à casa dos pais; o uso de múltiplos pontos de vista, como nas passagens em primeira pessoa de Vera Lynn; e uma linguagem que transita entre o poético e o documental. Uma estreia importante no cenário da literatura brasileira contemporânea.

"O palácio também era agredido como nós. Absorvia em sua estrutura de cimento o que nosso corpo acumulava pela alvenaria dos ossos. Era comum encontrar janelas quebradas, pichações ordinárias nos muros, sujeira despejada em nosso portão. Lavávamos os detritos com mangueira, ia-se tudo pelas bocas de lobo e bueiros da cidade. Imúndicie nenhuma parava nosso movimento; a cada semana, uma nova garota chegava, ocupando o lugar que podíamos criar. Às vezes com obras aqui e ali, levantando paredes, forrando lajes, desenhando pavimentos, empilhando recintos onde jamais se confiaria que pudessem se escorar. Vinham quase sempre vazias de esperança, mas as acolhíamos com nosso melhor, tentando inundá-las com um recheio de vida que por vezes arrancávamos do próprio peito. Não se tornavam mais numerosas porque morriam quase na mesma proporção em que chegavam. Hospedávamos também, além de travestis, bixas degredadas e moradores de rua; em meu palácio, não se fecha a porta. Ouvíamos com sangue quente histórias de gente nossa achada morta embaixo de marquises, podres em cantos de becos, esquecidas em macas de pronto-socorro porque ninguém tinha coragem de tocá-las." (pp. 130-1) - Trecho do Capítulo 10 - Vindas

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Marcelo Henrique Silva nasceu em Passos, no interior de Minas Gerais, mas hoje mora em Belo Horizonte. É médico e atuou na linha de frente durante a pandemia de Covid-19. Tem como foco o cuidado de grupos vulneráveis, minorias e pacientes oncológicos. Sangue neon foi o romance vencedor do Prêmio Alta Literatura na categoria autor estreante.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Sangue neon de Marcelo Henrique Silva

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