Ricardo Ramos Filho - Toda poeira da calçada

Literatura brasileira contemporânea
Ricardo Ramos Filho - Toda poeira da calçada - Editora Patuá - 176 Páginas
Capa e projeto gráfico: Roseli Vaz - Lançamento: 2025

Não há como dissociar o romance de estreia de Ricardo Ramos Filho da categoria de autoficção. Escritor com uma carreira já consolidada em títulos voltados ao público infantil e juvenil, além de coletâneas de crônicas, Ricardo apresenta em Toda poeira da calçada um protagonista-narrador que funciona como seu alter ego: Rodrigo Ferreira Ferro, escritor recém-aposentado que compartilha com a esposa, Linda, um casamento estável e sereno — e também dois gatos. Os filhos adultos já têm vida independente, inclusive com um deles morando na Finlândia. Esse cenário doméstico de aparente tranquilidade serve de pano de fundo para as reflexões existenciais de Rodrigo, que se desenrolam em suas caminhadas pela cidade de São Paulo — retratada quase como uma personagem viva da trama — enquanto ele lida com a culpa silenciosa pela ociosidade imposta por essa nova fase da vida. 

Na primeira parte do romance, Rodrigo procura maneiras de preencher o tempo livre e se adaptar ao vazio deixado pela aposentadoria do mundo corporativo: "Parado no trânsito olho e-mails no celular. A vida tornou-se impaciente, já não há como postergar o momento de sabermos se precisam de nós, e eu precisava que precisassem." Em uma das caminhadas pela cidade, descobre um quadro com natureza morta abandonado na calçada de seu bairro e o leva para casa, limpa cuidadosamente a moldura e a pintura, transformando esse gesto cotidiano em uma nova missão: descobrir quem é Ludmila Karpova, autora da obra. Enquanto isso, atende ao desejo da esposa de procurar com ela um apartamento mais apropriado a essa nova fase da vida, embora ainda goste do espaço da casa em que vivem.

"Subindo, atento à metafísica do caminho e do espaço ao meu redor, noto um quadro junto ao lixo de uma residência. Paro, aproveito para respirar. Fruteira sobre a mesa. Bananas, abacaxi, maçãs. As pessoas gostam de pendurar nas paredes paisagens mortas. Aquela, pelo visto, tinha destino certo. Ser enterrada, esquecida. Olhando bem não merecia. Possuia discreta vida nas cores, o autor sabia desenhar. A moldura, apesar de um pouco grande para as dimensões da tela e antiga nas curvas dos ouros, cumpria perfeitamente o seu papel. Dava ao todo dignidade. E embora seja difícil encontrar amor-próprio nas porcarias que aguardam a coleta do caminhão da prefeitura nas calçadas, aquele quadro, ali encostado na parede suja e rabiscada, mantinha a compostura. Conhecia perfeitamente o seu papel e, íntegro, não sucumbia à sentença inglória, injustiça cometida por gostos fatalmente duvidosos. Talvez tivesse sido substituído pelo retrato de algum artista da moda. Isto, ao invés de abatê-lo, dava-lhe forças. Não se resignava. Ali, condenado ao esquecimento, mostrava autoestima suficiente para me fazer parar no meio da rua e apreciá-lo. Não é para isso exatamente que servem os quadros, para nos submeterem à observação?" (pp. 17-8)

Na segunda parte do romance, a rotina do casal é transformada pela chegada da Covid-19. Em meio ao clima distópico instaurado pela pandemia, Linda, esposa do protagonista, decide viajar à Finlândia para cuidar do filho acometido por uma doença grave. Impedida de retornar ao Brasil devido ao protocolo de isolamento, ela se vê separada à força e indefinidamente do marido. Rodrigo, por sua vez, passa a morar com a mãe de 92 anos, que dispensou a antiga empregada. Vivendo uma época de sofrimento coletivo que marcou profundamente o mundo e particularmente ao nosso país devido às absurdas teorias antivacina, ele perde amigos e sente os efeitos da solidão — uma presença que já se insinuava com o avanço da idade, mas que agora se instala com força devastadora.

"Agonia, angústia, ânsia, apreensão. Observo o futuro com desconfiança. Amanhã pode chover e algum morro deslizar. Ou o vírus finalmente aprender a matar as pessoas mais importantes. Ele vem se especializando, multiplicando-se, evoluindo. Quer dar um jeito de perpetuar-se, driblar as vacinas, festeja diariamente a ignorância antivax. Competente o bichinho... E quando penso em coisas assim tão assemelhadas à morte, percebo o coração atropelar. É como se ele, devido ao horror, perdesse momentaneamente a noção de seu trabalho. E distraído pela experiência atroz se contraísse em um espasmo fugaz, felizmente antes de recuperar o tamborilar monótono da vida. No entanto, saio invariavelmente enfermo desta experiência. Não se passa impune por sobressaltos tão amplos. A gente acaba mais próximo da indesejada, ganha intimidade com o finamento. Até por ter sentido o peito doer, a cabeça latejar, imaginar partidas definitivas, a nossa própria. O luto marcando presença. Nunca lastimamos tanto!" (pp. 124-5)

Na terceira e última parte, o autor propõe uma reflexão sensível sobre os efeitos das dificuldades enfrentadas e das injustiças, sempre mais implacáveis sobre os menos favorecidos. É nas pequenas ações que permeiam a lenta passagem do cotidiano — o cuidado, o silêncio, a observação — que Ricardo Ramos Filho encontra matéria poética para tratar do sentido da existência. Com o simbolismo do quadro de natureza morta, cuja integridade é restaurada, o romance revela a urgência de resgatar o valor daquilo que foi descartado ou esquecido. Por meio desse gesto, nos é revelada não apenas a potência transformadora da arte, mas também a necessidade de preservar a dignidade humana, principalmente em tempos de extremismo político.

"[...] O tempo todo somos colocados diante de injustiças duras demais. Sobram perguntas. Uma delas, a que sempre fiz a mim mesmo, era relativa aos privilégios. Qual o motivo do mundo me ser tão favorável e, ao mesmo tempo, tão cruel com outros viventes? Por que a fome, o frio e a miséria corroíam tantas existências e passavam ao largo de mim? Que diabo de loteria seria essa? Caso acreditasse em Deus, aceitaria um futuro melhor no final das contas para os menos favorecidos, quando todos fôssemos julgados por nossas atitudes em um mesmo tribunal. Este final tão absoluto e apavorador inexistiria. A vida como um tempo de benefícios para alguns e provações para outros perderia o sentido. Até porque ser como sou, cercado de comodidades, me envergonha. Olho toda a poeira da calçada com imenso sentimento de culpa. Se o Todo Poderoso existisse, eu lhe diria algumas verdades, nos estranharíamos em um primeiro momento, mas eu seria mais feliz." (pp. 168-9)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Ricardo Ramos Filho é escritor, professor de Literatura, orientador literário. Graduado em Matemática pela PUC-SP, doutor em Letras pela USP, ministra cursos e oficinas. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Atua como produtor cultural, tendo sido curador do FLIBI (Festival Literário de Birigui – 2022), do Prêmio São Paulo de Literatura (2023) e da FLIRP (Feira Literária de Ribeirão Pires – 2024). Faz parte do Conselho Administrativo da SP Leituras, e do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta. Publicou cerca de trinta títulos infantis e juvenis, como Computador sentimental (1992), vencedor do Prêmio Adolfo Aizen, O livro dentro da concha (2011), selecionado para o catálogo FNLIJ para a Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha em 2012, Feiticeira (2014) e Maria vai com poucas (2018), além de livros adultos, como Conversa comigo (2019) e Cidade aberta, cidade fechada (2023), de crônicas.

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