Enzo Fuji - Perpetuando a ilha de Jeju com tangerinas
Recentemente, publiquei por aqui uma resenha sobre o romance "Sem despedidas" da sul-coreana Han Kang, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2024, ambientado na ilha vulcânica de Jeju, conhecida devido ao massacre de mais de trinta mil pessoas pelo governo coreano após a Segunda Guerra Mundial, entre 1948 e 1949, antes da Guerra da Coreia em 1950. O livro de Enzo Fuji, aborda outras características da ilha, conhecida também pelas mulheres mergulhadoras locais sem equipamentos de respiração, chamadas Haenyeo que coletam ouriços-do-mar, polvos e algas nas águas frias do oceano. Essa prática, transmitida de geração em geração, é mais do que uma ocupação — representa um símbolo de resistência, identidade e vínculo comunitário, reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
A prosa poética de Enzo Fuji, aliada às referências históricas e culturais sobre a Coreia do Sul, faz deste romance de formação uma obra original e desafiadora. O protagonista, o jovem Hae-In, é confrontado com as dores do crescimento em meio a uma sucessão de perdas: o suicídio do avô, a doença degenerativa que consome seu pai aos poucos, e a ferida persistente do abandono precoce da mãe. Ao longo da narrativa, o autor explora como o convívio entre as diferentes gerações da família marca profundamente a maneira como Hae-In compreende o mundo, constrói sua identidade e elabora sua memória afetiva. Ao traçar paralelos entre a jornada individual do protagonista e os traumas coletivos deixados pela ocupação japonesa em Jeju — bem como pelos conflitos que levaram à divisão da Coreia em dois países tão distintos — a obra transcende o plano pessoal, alcançando uma dimensão universal.
"Antes de começar a chover, o sol, confuso, já escorregava às costas das Haenyeo que nadavam no mar. Quatro ondas espaçadas puseram a ondular igualmente à época do nascimento da primeira pessoa coreana. O contraste das roupas das idosas com a coloração do céu era único, as luzes contradiziam-se, tudo escurecendo ainda mais, e não havia um sinal de paz, muito menos de esperança. Um prisma metálico cumpriu-se, vindo na água-garoa o cheiro de hidróxido de sódio que destacou o vulcão Sunrise Peak refletido no céu. Não entraria em erupção com a chuva. No fundo, bem já no fundo, o sol ia, como se amparasse as senhoras, determinadas em regressar. Pediram urgência em um sobressalto, avisaram entre si sobre a chuva, em um sinal que nunca tinham feito, mas que indicava algum perigo. Os gritos foram tão arrebatadores que baforadas carregaram de uma só vez os abalones, polvos, ouriços-do-mar dentro das redes artesanais e seguiram uma atrás da outra em uma fila organizada, depois de mergulharem dez metros de profundidade. Elas amainaram no barco com o capitão exigindo pressa, ele não berrava. A pressa consistia em ajudá-las a ingressar. Era um homem alto, uma cabeça castanha, os olhos quase estupidamente calmos." (p. 15) - Trecho do Capítulo 1
A referência no título às tangerinas, também símbolo da ilha de Jeju, funciona como mais uma metáfora que o autor emprega ao relacionar o sabor agridoce da fruta à resiliência e à doçura preservada mesmo diante das adversidades. Essa imagem delicada evoca não só o paladar que resiste ao tempo, mas também a identidade coletiva das mulheres da ilha, que preservam tradições profundas. Nesse mesmo espírito, o corajoso e difícil trabalho das mergulhadoras Haenyeo representa uma linda simbologia de força e adaptação: "Elas diziam fighting, fighting. Fighting era fazerem o melhor trabalho possível nas condições que tinham e que conheciam, e, com ela, mostrar a insuficiência que eram, mas sem críticas, porque não poderiam controlar mais nem menos, só o que estava ao seu alcance."
"Era um mês de mau agouro, e hoje, um dia impossivelmente feliz, porque Hae-In tinha sonhado com seu avô. Segundo a tradição sul coreana, sonhar com o falecido significa que ele poderia roubar a alma da pessoa viva, a alma morta que buscava de novo a vida. Se seu avô estivesse embrenhado à água, então seria ainda mais perigoso. O menino, imerso, via-o vestido com um véu esbranquiçado, confirmava, estavam ambos sob a água, mas Hae-In não se molhava. O seu corpo aproximou-se ao dele, tentou abraçá-lo, apertá-lo os músculos e os pulsos, batê-lo sete palmas nas escápulas, como se fossem acenos. Sem tempo, não pôde perguntá-lo o motivo dessa decisão tão rápida. Tentou fundir os corpos num longo segundo e o menino acordaria. Hae-In, com o rosto ensebado, lembrou-se o quanto adorava o medo e o conforto juntos, parecia ver tudo à escuridão mesmo com a luz acesa, no abajur da sua mesa. Dormir seria a sua nova casa." (p. 77) - Trecho do Capítulo 8
O recente boom do cinema sul-coreano — impulsionado por obras como Parasita, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2020, e por uma indústria que alia sofisticação estética à crítica social — encontra paralelo neste romance ao revelar camadas profundas da experiência humana por meio de narrativas locais com alcance universal. Enzo Fuji vai além do entretenimento: constrói uma obra sensível e de grande potência literária, resultado de uma intensa pesquisa histórica e cultural sobre a Coreia do Sul, demonstrando uma atenção respeitosa sobre os traços de uma sociedade tão complexa quanto distante da nossa realidade. Sua criatividade ao entrelaçar história, geografia, culinária, memória afetiva e linguagem poética faz deste livro um projeto corajoso e uma leitura recomendada.
"O mar era essa história cruel, essa cicatriz remota que ninguém poderia ou deveria compreender. Diziam que uma névoa como um balão sobrevoara a região, a água ficara mais gelada, que começara a doer os ossos das pessoas e a reação delas foi inflar-se com as cabeças que latejavam. Estavam vindo os japoneses, o mar estava vivo. As balsas vieram. Alguns anos depois já com o costume do Japão invadindo a Coreia, a irmã do seu avô estava à beira-mar e a água se atrapalhou nos seus pés e ela, quieta, muito quieta, vislumbrou os soldados japoneses próximos aos prédios pequenos, quase como casas, no início das pedras. Sentia-se orgulhosa e, ao mesmo tempo, acovardada de ser coreana. Havia um buraco na areia, e furava-o mais, acima, se via a névoa que fechava todo o mar, que ia até o fim do oceano e retornava. Ficava a olhar, como sempre. Eram pessoas duras, desenganadas, às preces, prontas para orientar-se somente nas ruas extensas, ainda a serem construídas as casas." (pp. 121-2) - Trecho do Capítulo 14
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