Enzo Fuji - O pretérito poético da casa invisível

Literatura brasileira contemporânea
Enzo Fuji - O pretérito poético da casa invisível - Editora Patuá - 184 Páginas - Capa, projeto gráfico e diagramação de Fernando Campos - Lançamento: 2022.

Surpreende a personalidade do jovem Enzo Fuji em continuidade ao livro de poesia: Depois que seja tarde antes que seja nunca (2018), agora marcando a sua estreia nos contos com narrativas que escapam ao lugar-comum e assumem ritmo próprio na formação de uma prosa poética, nem sempre confortável para o entendimento do leitor e, em algumas passagens, até mesmo incômoda. Contudo, não é justamente este o desafio maior da literatura, buscar sempre novas formas de escrever sobre o que não pode ser expresso por palavras? Enzo busca inspiração nessa casa invisível formada por nossas memórias e que ele, muito cedo, já descobriu: pode ser construída e demolida incontáveis vezes no exercício solitário da escrita.

A primeira parte do livro, A tríade da sombra, apresenta na abertura uma longa narrativa sobre amor e morte, em primeira pessoa na forma de carta, Socos ocos que não veem, na qual o protagonista recorda passagens de sua relação com o amigo Pedro ao longo da vida, desde os tempos da faculdade, uma amizade que se transformou em paixão, mas nunca foi assumida: "Não te digo, Pedro, que, para ser morto, é preciso estar enclausurado na terra ou esvaecido em poeira: te digo, amigo, que, para ser morto é preciso apenas a força de sonhar que eu não existo. E isso: é verdade, Pedro, o pardieiro das tuas sombras, o encosto dos teus gritos e o leve odor de uma revolução: Pedro, para ser feliz é preciso sonhar com força." 

No segundo conto, Império del fuego, outra relação amorosa, dessa vez entre Beatriz e Sara, uma brasileira e a outra colombiana: "você soube que eu era uma poeta que fui ao Brasil para estudar literatura portuguesa, mas quando te conheci, eu ia querendo trocar os meus interesses pessoais por um interesse subterrâneo, não mais os linguistas, nem as autoras com saias arroxeadas, era você, amiga, ia percebendo os meus riachos, ia me abrindo os canteiros, ia costurando as viseiras, ia ludibriando meu sombrero vueltiao, ia laminando os meus cachos, com o shampoo cheiro de coco, entre os sabonete s de pétalas de rosas, que pegavam fogo, Beatriz, enquanto eu ardia com a água no banheiro, eu sempre esbarrava na saboneteira! [...]"

Fechando a primeira parte, Sombra arquitetural, um conto também na forma de carta do próprio Enzo Fuji para seu professor Luiz Antonio de Assis Brasil, um exercício de metaficção que obviamente mistura ficção e realidade. Na segunda parte do livro, A lição de casa, uma reunião de histórias que, em sua maior parte, trabalham com a influência da ascendência japonesa do autor com narrativas de extrema sensibilidade: "Sempre, por necessidade, ou advento de um detalhe, imaginamos a lição de casa, sendo uma das tarefas mais árduas, como se fosse um exercício de função trigonométrica. Diferentemente da função, por não ter uma resposta exata de como viver, simplificamos a lição da casa no mais assertivo enigma: apenas viver."

"Vinha sem forças, assim como eu: o dia levantando manso, e a minha vó acolhendo uma beleza frequentadora. Eu não gostava de cheirar. Eu gostava de sentir, por isso fechava os olhos. Abocanhava. Queria ser a minha vó nos meus olhos, e talvez esse fechar os olhos me trouxesse outros cheiros. Outros juízos de esperança. Esperança é um gostar que nunca existirá. Gostava disso: o possível me inaugurava. Como eu ficava cansada logo cedo, eu não tinha raiva, a minha avó dizia era porque eu era uma pessoa apenas. Uma pessoa tão pequena apenas erguendo os horizontes do mundo. Tinha de ser maior, crescer, ser adulta. Eu disse: tenho medo de ser pequena demais e ser adulta ao mesmo tempo." (p. 99) - Trecho do conto Minha vó fedia

Tórrido frio é inspirado no bosque de Aokigahara, localizado próximo ao famoso Monte Fuji no Japão, onde pessoas costumam cometer suicídio com frequência, talvez com base no antigo costume de ubasute, em que idosos eram abandonados nesta região para morrer em épocas de escassez de alimentos e de seca prolongada: "Era uma vegetação arqueada às cinzas grotescas do vulcão. O Monte Fuji, para lá do norte, espalhava-se muito simetricamente como uma barriga gigante, no fundo da floresta dos suicidas."

"Quando a sua filha Harumi, aos dez anos de idade, morreu, houve um silêncio profundo penetrando toda a selvageria do país. Era como se o país fosse a parte mais breve da sua vida, como se o que o impelisse a ressurgir fosse a paz rara. O ferreiro, sabendo do nascimento dos suicidas, decidiu desistir dos ruídos dos ferros e entabocar as cinzas da sua filha com os mortos. Estava absolutamente decidido. O homem, muito triste, julgou necessidade em uma busca impetuosa por atenção. Escutava sempre, a floresta não abandona os suicidas. Ela não os engole, nem os ameaça. Ela simplesmente os aceita, como se pudessem padecer juntos. Como se pudessem absolutamente viver. Viver de outro modo." (p. 110) - Trecho do conto Tórrido frio

Outro conto a se destacar é Bonsai da morte, no qual a filha cuida da mãe doente: "O espaço era só a casa e, depois da ida ao hospital, ao lado do quarto da Sueko, a filha não aguentou e chorou. Talvez chorasse todos os dias quando ainda esperasse à volta da Sueko. A filha não abandonou o choro, sua única forma dizível de proteção. Sua única confiança no outro dentro de si. Nesse dia, a filha agoniou-se, sabendo que a família era a unidade que se encolhe na vida, quando ela mesma carregava a censura no seu órgão. Pode até se convencer do crescimento. Que a família é um limite do tempo e o desaparecimento explicava qualquer regozijo à glória do perpétuo." Em Dona da casa um bom exemplo de como iniciar um conto: "A mão disse que ia embora. [...]".

"A mãe disse que ia embora. O pai não acreditou, mas a ajudou a arrumar as malas. Homem de presteza, acolheu a carruagem do fugir. Fiquei num soluço que demorou a passar, na minha vergonha em ponderação, tropecei diversas vezes num sapato velho, que ela preteriu deixar. O céu esparso concedeu, nesse dia, uma explicação, eu já pensava que os abismos estavam em coisas mais simples do que em uma montanha ou em um vulcão. O pai se aperreou que, nisso, fosse certa objeção, e nesse enigma, não contestou a decisão. Calou-se. Observei claramente uma visão turva, que não era a luz, era a falta dela. A mãe e o pai eram pobres em dizer adeus, e ela afligiu-se numa manobra desviada, com até mais. Sem beijo. Sem ódio. Sem nada. Se ao menos houvesse ódio, eu sentiria. Não senti a saliva dela, nem dessa vez, nunca mais." (p. 123) - Trecho do conto Dona da casa

Sobre o autor: Enzo Fuji é escritor e nasceu em São Paulo (2000). Publicou o livro de poesia Depois que seja tarde antes que seja nunca (Editora Patuá, 2018, finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura). Fez parte da antologia Adolescência e seus temores (Editora Jogo de Palavras, 2019). Venceu o Edital Cultural da calourada UNICAMP (2020). Tem poemas nas revistas literárias Mallarmargens, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, entre outras. Participou das Oficinas Literárias do Marcelino Freire (2021) e do Assis Brasil (PUCRS, 2021). Agora publica o seu primeiro livro de contos, além de estar escrevendo o seu primeiro romance sobre a mestiçagem japonesa-brasileira.

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