Bernardine Evaristo - Manifesto: Sobre nunca desistir

Literatura inglesa contemporânea
Bernardine Evaristo - Manifesto: Sobre nunca desistir - Editora Companhia das Letras - 232 Páginas - Tradução de Camila von Holdefer - Capa: Giulia Fagundes - Lançamento: 2022.

Bernardine Evaristo se tornou a primeira mulher negra a ganhar o Booker Prize em 2019 com o romance Garota, mulher, outras (ler resenha do Mundo de K), dividindo o prêmio com a canadense Margaret Atwood. Neste livro de memórias, ela escreve sobre a sua infância e ascendência, tanto do lado da famíla da mãe inglesa, católica e branca, quanto da origem africana do pai, imigrante nigeriano e negro. A luta contra as hostilidades decorrentes do racismo e do machismo na tradicional sociedade inglesa, as suas relações afetivas com homens e mulheres, assim como a persistência para conquistar o seu lugar como escritora profissional, sempre com um olhar íntimo, honesto e bem-humorado, fazem de Manifesto: Sobre nunca desistir um depoimento inspirador para as novas gerações.

De fato, a diferença principal entre esta obra e outros livros de memórias não está somente no caráter confessional, mas também em uma série de instruções práticas que têm como base as lições aprendidas ao longo da própria carreira e dos obstáculos internos e externos superados pela autora até vencer o Booker Prize aos sesenta anos, lições que refletem sobre o poder da criatividade, adaptação e autoconfiança, eventualmente em um tom de manual de autoajuda, contudo, ainda assim convincente, por exemplo: "Seja rebelde, desobediente & audaz com sua criatividade, assuma riscos em vez de seguir por estradas previsíveis; aqueles que se movem dentro dos limites seguros não fazem nossa cultura ou civilização avançar."

"Minha mãe, inglesa, conheceu meu pai, nigeriano, em um baile para imigrantes no centro de Londres em 1954. Ela estava estudando para ser professora, em uma faculdade católica para formação de professores administrada por freiras em Kensington; ele estava se preparando para se tornar um soldador. Eles se casaram e tiveram oito filhos em dez anos. Ao crescer, fui rotulada de 'mestiça', o termo para pessoas birraciais na época. Como todas essas categorias – preto, de cor, negro, pardo, birracial, não branco –, elas funcionam como descrições aceitas até serem substituídas. Agora entendemos que raça não existe de fato – não é uma verdade biológica –, e os humanos compartilham tudo, exceto um por cento do nosso DNA. Nossas diferenças não são científicas, e sim decorrentes de outros fatores, como o ambiente. Mas raça é uma experiência vivida, e portanto é extremamente significativa. Compreender que raça é uma ficção não significa que podemos dispensar as categorias – não ainda." (pp. 15-6)

Pelo fato de ser birracial, Bernardine encontrou dificuldades em ser aceita tanto na porção branca quanto negra da sociedade: "A realidade é que uma mulher de pele mais clara de classe média nem de longe vai ser tratada na Grã-Bretanha da mesma forma que uma mulher negra de pele mais escura e de classe operária, que por sua vez não vai ser tratada da mesma forma que um homem negro de qualquer classe, profissão ou caráter que esteja cuidando da própria vida, que corre um risco muito maior de, por exemplo, sofrer perseguição policial pelo crime de 'andar ou dirigir ou respirar sendo negro'." O mais curioso, neste caso, é que o ativismo político da escritora não era visto de forma autêntica pelos setores negros da sociedade que exigiam uma postura padronizada, espécie de "estereótipo racial no interior da raça", como ela define.

"Ser birracial deu origem a uma série particular de experiências, observações e desafios. Assim que saí da escola de teatro e comecei a me movimentar em círculos negros, me identificar como tal não era tão simples como eu imaginava. Apesar de me sentir aceita pelas minhas colegas negras, nem sempre era bem-vinda em outros ambientes enquanto fazia a transição de uma infância em que não me sentia confortável com a cor da minha pele para uma identidade política negra. Logo me deparei com o conceito de 'negro(a) autêntico(a)', ao qual eu não correspondia. Algumas pessoas tinham ideias muito claras do que isso implicava e me davam instruções do que pensar, do que falar, de como me vestir, como dançar, com quem namorar e o que escrever. Era uma tentativa reducionista e ridícula de essencializar o conceito de negritude. Mais de 1 bilhão de pessoas negras no mundo e todas deveriam ser fãs de reggae – sério? Era um estereótipo racial no interior da raça, embora os defensores da ideologia 'como ser negro' pensassem que estavam fazendo o oposto. Fui reprovada no teste na primeira fase porque falava o inglês correto em vez do patoá que fluia da boca dos britânico-caribenhos de segunda geração. O fato de eu não ser caribenha era um pequeno detalhe para alguns dos meus críticos." (pp. 40-1)

Os relacionamentos amorosos ocupam parte relevante do livro: "Quando adolescente, eu gostava de garotos, embora os garotos não gostassem muito de mim, o que não era nenhuma surpresa para uma garota negra/miscigenada crescendo em um ambiente branco nos anos 1970, sobretudo uma que não era bonitinha." Ao viver a sua sexualidade como lésbica assumida, a partir dos vinte anos, encontrou a paixão e o desespero de um relacionamento abusivo com a Dominatrix Mental (DM), como ela chama a parceira com a qual se relacionou por cinco longos e torturados anos: "Se tivesse ficado com a DM, sem dúvida teria parado de escrever por completo e, mesmo não sendo suscetível à depressão, provavelmente teria sucumbido a ela." Hoje, Bernardine vive com o marido David que conheceu em 2005: "Percebi que assumir um compromisso público e legal com David pelo casamento tinhame deixado livre para seguir em frente com outras áreas de minha vida – das quais a mais importante é a escrita."

"Minha vida criativa está intimamente entrelaçada com minhas relações amorosas com outras pessoas, aquelas por quem acumulei reservas de emoção e verti litros de lágrimas. Anos atrás, todo o meu ser seria consumido de desejo pelo objeto da minha atenção romântica. Meus sentimentos mais profundos foram despertados pela primeira vez quando me senti atraída por outras pessoas. Antes disso, achava que eu passava por cima das minhas emoções e não tinha ideia, ao menos não conscientemente, da força que meus sentimentos podiam ter, até me apaixonar. Se o amor fosse à distância ou não correspondido, então eu mergulhava ainda mais nas profundezas subterrâneas do desejo. Essa paixão, esse estado de prostração hipersensível, se tornou uma força motriz da minha escrita, pois nunca quis ser o tipo de escritora cerebral cujo trabalho era intelectualmente fértil, mas emocionalmente árido. Queria ser o tipo de escritora capaz de atingir as pessoas num nível mais profundo – o poder de tocar, de comover –, e eu nunca era mais emotiva do que quando estava num relacionamento, ou querendo estar em um." (p. 83)

Sobre a autora: Nascida em Londres, de origem nigeriana, Bernardine Evaristo é autora de livros de ficção, ficção em versos, ensaios, poemas, teatro e crítica literária. Sua obra retrata a diáspora africana, entre o passado, o presente e a fabulação. Além do premiado Garota, mulher, outras (Booker Prize 2019), publicou Mr. Loverman e Blonde Roots, entre outros livros. É presidente da Royal Society of Literature e professora de escrita criativa na Brunel University, em Londres.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Manifesto: Sobre nunca desistir de Bernardine Evaristo

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