Bernardine Evaristo - Garota, mulher, outras
A anglo-nigeriana Bernardine Evaristo se tornou a primeira mulher negra a ganhar o prestigiado Booker Prize em 2019 com este romance, dividindo o prêmio com a canadense Margaret Atwood, uma decisão que só havia ocorrido duas vezes desde a criação do Booker em 1969, a primeira em 1974 (Nadine Gordimer / Stanley Middleton) e a segunda em 1992 (Michael Ondaatje / Barry Unsworth). O livro, que foi muito elogiado pela crítica internacional, narra a história de 12 personagens dos séculos XX e XXI, a maior parte das quais são mulheres negras vivendo no Reino Unido, mas isso é pouco para entender a genialidade desta obra, muito além do que apenas um bom romance.
O texto é curiosamente editado em versos livres, sem pontuação, uma técnica peculiar logo assimilada pelo leitor que, antes do que possa perceber, estará lendo compulsivamente sem querer largar o livro, contudo este também é apenas mais um detalhe original da autora. A verdadeira engenhosidade do romance consiste em contar uma história que se desdobra em muitas outras, oferecendo múltiplos pontos de vista e fazendo com que as personagens dividam o protagonismo ao longo da narrativa, além de interagir entre si, complementando ou contrariando a perspectiva inicial que se possa ter tido sobre elas. A polifonia narrativa é ainda mais enriquecida pelas diferenças de idade (variando de 19 a 93 anos), herança cultural, classe social e orientação sexual das personagens.
A estrutura se divide em quatro partes principais – além de mais dois capítulos finais que esclarecem algumas conexões –, sendo que cada uma dessas partes desenvolve um grupo de três personagens. Na primeira, o foco é mais contemporâneo com a narrativa centrada em Amma, Yazz e Dominique. Amma é uma dramaturga na casa dos cinquenta, lésbica, e que está vivenciando o dia de estreia de sua peça no National Theatre. Ela sempre trabalhou à margem do circuito oficial e, portanto, é questionada pelo sucesso. Yazz é sua filha, concebida por inseminação artificial, uma verdadeira força da natureza, feminista, sempre questionando os pais e o tratamento da sociedade em relação às minorias. Dominique é a melhor amiga e ex-sócia de Amma na companhia de teatro alternativa que criaram na juventude, ela se mudou para os Estados Unidos envolvida em um relacionamento tóxico.
"Amma então passou décadas à margem, uma renegada arremessando granadas no establishmnet que a excluíaaté o mainstream começar a absorver aquilo que um dia tinha sido radical e ela se ver ansiosa para se juntar a ele
coisa que só aconteceu quando a primeira diretora artística mulher assumiu o comando do National Theatre três anos atrás
depois de tanto tempo ouvindo um educado não de seus antecessores, ela recebeu uma ligação logo após o café da manhã de uma segunda-feira quando sua vida era uma extensão vazia em que não havia nada mais a esperar além de novelas de tevê
adorei o roteiro, a gente tem que fazer, você também dirige pra gente? sei que o prazo é apertado, mas será que você teria tempo pra um café esta semana?" (p. 10)
Na segunda parte, o núcleo de personagens é formado por Carole, Bummi e La Tisha. Carole foi vítima de estupro aos treze anos, depois de uma festa na casa da amiga La Tisha, e este trauma provocou um comportamento compulsivo para conquistar o sucesso na carreira e a necessidade de superação, fazendo com que ela obtivesse notas estupendas no ensino médio e fosse admitida na Universidade de Oxford. Bummi, a sua mãe, luta para manter as tradições culturais da família, ela emigrou da Nigéria depois que o marido morreu em um acidente ao refinar diesel em casa de forma ilegal, "enquanto milhões de barris de petróleo eram sugados a milhares de metros de profundidade na terra pelas furadeiras gigantescas das companhias petrolíferas a fim de fornecer energia preciosa para o resto do planeta". La Tisha, amiga de infância de Carole, acabou se tornando mãe solteira antes de completar vinte e um anos, com três filhos de pais diferentes, até se equilibrar, trabalhando como gerente de um supermercado.
"Carole está nos degraus prateados da escada rolante com as demais pessoas em deslocamento usando a paleta de escritório sombria enquanto todos são levados para o alto, do subsolo em direção ao céu, até o nível da rua em BishpsgateShirley, Winsome e Penelope, dividem a terceira parte do romance. Shirley sempre trabalhou como professora em uma escola localizada em Peckham, uma região de Londres com muitos imigrantes. Ela era conhecida pelos alunos (inclusive Carole e La Tisha do capítulo anterior) como "Cara de Cu" e teve seu idealismo desmontado ao longo dos anos devido às crises do setor de ensino, tornando-se uma mulher autoritária e ressentida. Winsome, sua mãe, uma imigrante do Caribe, esconde um caso tórrido que manteve com o genro Lennox no passado e Penelope é a única das doze personagens que é branca, colega de trabalho de Shirley. Ela tem um histórico de alcoolismo devido à frustração e crise de identidade por ter sido adotada e não saber nada sobre os seus pais biológicos.
está a caminho de uma reunião matinal com um novo cliente de Hong Kong cujo patrimônio líquido é várias vezes o PIB dos países mais pobres do mundo
está pensando que é bom ele não dar uma segunda olhada quando ela entrar na sala de reuniões
uma parede de vidro enorme com vista para Londres
a outra exibindo um amontoado gigantesco de obras de arte dedutíveis do imposto de renda que custam o preço de uma casa na Zona 2
está pensando que é bom ele não ohar para ela procurando o carrinho com as garrafas de café, com a seleção de chás (ervas, verde, preto, Ceilão) e aqueles biscoitos corporativos em embalagens individuais" (p. 132)
"com o tempo Shirley se tornou uma professora experiente que manteve o compromisso de dar às crianças uma chance de vencer
se dando conta de que tudo estava contra elas com turmas tão enormes e falta de recursos e pais que não faziam a menor ideia de como ajudá-las com a lição de casa
pais que tinham largado a escola cedo para trabalhar numa fábrica ou aprender um ofício ou ganhar um beliche num reformatório
ela era bem diferente dos aventureiros na profissão dela, como reclamava com Lennox com frequência, que faziam o mínimo possível e desprezavam abertamente as tarefas como se fossem um inconveniente e não a razão pela qual tinham um maldito emprego
era ruim e ficou pior quando o governo Thatcher começou a implementar o Grande Plano para a Educação" (p. 259)
Na quarta parte, ficamos conhecendo Megan (que se transformou em Morgan), Hattie e Grace. Megan preferia usar calças quando criança e uma vez destroçou a sua coleção de Barbies, cortando o cabelo das bonecas, arrancando os olhos e mutilando algumas. Depois de passar por muitos problemas na adolescência, ela (ou "elu" como prefere ser referenciada) se apaixona por Bibi que transicionou de gênero para ter estrogênio, seios e vagina. Megan, por sua vez, quer uma "existência não binária" e se identifica como "gênero neutro", considerando que tem "várias alternativas à disposição" e muda o próprio nome para Morgan. Já Hattie, chamada pela família de GG, é a bisavó de 93 anos que sempre morou em uma fazenda no norte do país e aceita sem restrições as escolhas de Megan/Morgan, diferente do restante da família. Hattie guarda um segredo da sua juventude, uma filha bastarda rejeitada pelos pais. Finalmente, chegamos até Grace, mãe de Hattie, que se casou com um homem branco, herdeiro da fazenda Green Fields, depois da Segunda Grande Guerra, origem das futuras gerações.
"Megan se perguntou em voz alta como podia colocar a identidade neutra de gênero em prática quando viviam num mundo binário, e isso com tantas definições (equilibrado e desequilibrado, ela evitou dizer), a própria ideia de gênero podia em algum momento perder todo sentido, quem se lembra deles? talvez o ponto seja esse, um mundo completamente livre de gênero, ou será um sonho utópico e ingênuo?
Bibi respondeu que sonhar não era ingênuo, era essencial para a sobrevivência, era o equivalente a ter esperança em grande escala, utopias eram um ideal inalcançável por definição, e, sim, ela de fato não conseguia imaginar bilhões de pessoas aceitando totalmente a abolição da ideia de gênero enquanto vivesse
Megan disse que também no caso parecia utópico esperar ser tratada por pronomes neutros por pessoas que não tinham nem ideia do que ela estava falando
Bibi disse que era o primeiro passo para mudar a cabeça das pessoas, mas, sim, como em todos os movimentos radicais, ia haver um bocado de resistência e Megan ia ter que ser resiliente" (p. 357)
Um livro difícil de resenhar devido às dezenas de personagens bem construídas e convincentes, assim como histórias de forte apelo humanista e diferentes pontos de vista que se conectam ao longo de quase quinhentas páginas, apresentando um grande e rico painel sobre a formação e a atualidade da sociedade do Reino Unido pós-Brexit e a luta contra o machismo e racismo. Certamente Garota, mulher, outras é um dos melhores lançamentos do ano.
Sobre a autora: Bernardine Evaristo é uma premiada escritora anglo-nigeriana, autora de obras de ficção, ficção em versos, ensaios, poemas, teatro e crítica literária. É professora de escrita criativa na Universidade de Brunel, em Londres, e vice-presidente da Royal Society of Literature. Garota, mulher, outras é seu oitavo livro. Bernardine Evaristo foi escalada para abrir a edição de 2020 da Flip, agendada para os dias 3 e 6 de dezembro.
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