Michel Laub - Solução de dois Estados
O título do oitavo e recém-lançado romance do gaúcho Michel Laub é uma referência ao improvável acordo de paz entre judeus israelenses e árabes palestinos na região do Oriente Médio, uma citação que remete ao conflito entre dois irmãos: Alexandre e Raquel Tomazzi, protagonistas muito pouco confiáveis e, cada um ao seu próprio modo, com discursos radicais de violência e ódio. A obra está inserida em um contexto incontornável e reproduz, em seu microcosmo, o sistema político polarizado que hoje divide a nossa sociedade, não há como evitar a comparação.
O livro apresenta três vozes narrativas, Brenda Richter, cineasta alemã que perdeu o marido, assassinado em um passado recente no Brasil e prepara um documentário sobre a violência; aparentemente ela representa uma postura mais humanista e de sensatez. Os entrevistados são os dois irmãos: Raquel, uma artista performática de cento e trinta quilos que produz vídeos sexuais nos quais é agredida e humilhada e Alexandre, chamado de "miliciano" pela irmã, empresário que atua em um estranho e lucrativo empreendimento comercial, constituído por academias de ginástica ligadas a uma espécie de associação religiosa de inspiração evangélica na periferia de São Paulo.
O projeto do documentário tem como base uma agressão que Raquel sofreu, no início de 2018, durante um debate sobre arte e política num hotel na capital paulista, patrocinado por um poderoso Banco nacional. Como sempre, Michel Laub desenvolveu a estrutura do romance por meio de uma forma criativa e muito bem conduzida, dessa vez como se fosse a organização do próprio documentário, com seções de "Material pré-editado", "Extras/Material a inserir" e "Material bruto", variando as vozes narrativas, as entrevistas cobrem o período dos anos noventa, a partir do Plano Collor, que foi a causa da ruína da família, até as eleições que definiram o governo atual.
"Isso tem tudo no YouTube. Um cara na equipe, Ibrahim Eris. Presidente do Banco Central. Chamavam ele de o Turco. O Plano Collor foi em março de noventa, fizeram um bloqueio de todas as contas por dezoito meses, deixaram cada um tirar só um troco de feira, aí botam para explicar. O Turco diz regra aplicado. Juros pro rata temporis. Você não sabe se ri ou chora, na entrevista um não fala português, a ministra é uma débil mental... O nome da ministra era Zélia Cardoso de Mello, sabe como eles decidiram quanto cada cidadão podia tirar da conta? Esses caras. Num sorteio. Botaram os números num papelzinho e jogaram para cima. [...] O meu pai soube do Plano Collor em casa. O Jormal Nacional começa às oito e pouco.É o jornal mais importante daqui, eles apoiavam o governo. Todos os canais apoiam o governo porque são apoiados pelos bancos. Todos os ministros que deixam o cargo vão trabalhar num banco. O jornal mostrou a entrevista do Turco, ele disse que não tinha confisco nem calote, nós estamos dando um chance para o sociedade brasileira, aí o meu pai ouve isso e levanta... Ele pega a tevê. Era uma tevê de tubo grande, nem sei como ele teve força para carregar. Ele ia jogar a tevê contra a parede, mas perdeu o equilíbrio. [...]" - Trecho do depoimento de Alexandre
Na verdade, nada é o que parece inicialmente na trama e o leitor só percebe aos poucos as verdadeiras motivações dos personagens à medida em que as três vozes narrativas, Alexandre, Raquel e Brenda, interagem e se contradizem. Raquel foi uma vítima de bullying na adolescência e sofreu uma violenta e covarde agressão no evento em São Paulo, mas também é um "poço de ego ressentido e vingativo", na provocação lançada por Brenda, que acaba perdendo a sua postura de imparcialidade e empatia no decorrer da produção do documentário.
"Dá para dizer um monte de coisas sobre aquele dia. Seis de fevereiro de dois mil e dezoito. A não ser que você ache que é questão de sorte e azar, um mero acaso esse homem vir falar comigo antes de eu subir no palco, e seiscentas pessoas verem o que ele fez comigo em cima do palco, e não ter nenhum segurança nas primeiras filas, nem nas filas do meio, nas do fundo, nenhuma das seiscentas pessoas se deu ao trabalho de tentar encontrar um enquanto eu apanhava. [...] O homem que me bateu usou uma barra de ferro. A barra de ferro era preta. Quer mais algum detalhe? Esse foi o primeiro golpe, na altura do peito. A barra tinha uma ponta, como se fosse um prego na parte lateral, é essa a cicatriz que você viu. Como ninguém fez nada quando a surra começou, ele criou coragem para dar um segundo golpe no rosto. O golpe foi amortecido porque eu botei a mão na frente, se não fosse isso talvez eu estivesse morta, e mesmo assim teve força para entortar o meu nariz, esse que você viu também. [...]" - Trecho do depoimento de Raquel
Em uma recente entrevista sobre Solução de dois Estados, Michel Laub respondeu da seguinte forma ao ser questionado se o futuro do Brasil é se tornar uma nação de Alexandres e Raquéis: "Sim, mas também uma nação de gente que consegue olhar para eles e seguir um outro caminho. Não um caminho de meio-termo ou algo assim, porque o isentismo hoje em dia é quase sinônimo de conivência com a barbárie, mas algo próprio. A literatura pode ajudar na formação desse caminho próprio. Se eu não acreditasse nisso, não continuaria escrevendo." (ler aqui a entrevista completa para o Estado de Minas).
Sobre o autor: Michel Laub nasceu em Porto Alegre, em 1973, e vive em São Paulo. Escritor e jornalista, publicou sete romances, todos pela Companhia das Letras – entre eles Diário da queda (2011) e O tribunal da quinta-feira (2016), ambos com direitos vendidos para o cinema. Seus livros saíram em treze países e dez idiomas. Recebeu os prêmios JQ-Wingate (Inglaterra), Transfuge (França), Bravo Prime e Jabuti (segundo lugar), entre outros.
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