Ian McEwan - Lições
Ian McEwan está de volta com um dos mais longos e brilhantes romances de sua carreira. A narrativa tem início ao abordar dois momentos distintos na vida do protagonista Roland Baines, primeiramente em outubro de 1962, durante a crise da instalação dos mísseis nucleares em Cuba pela União Soviética, uma provocação aos Estados Unidos que marcou o auge da Guerra Fria entre as duas maiores superpotências da época depois da Segunda Grande Guerra. Roland Baines, então com 14 anos, mantém um relacionamento sexual obsessivo com sua professora de piano, Miriam Cornell, de 25 anos, influenciado pelo temor de que o mundo estivesse prestes a acabar. Em paralelo, acompanhamos em 1986 o término do casamento do mesmo Roland com Alissa que o abandona após o nascimento do filho, deixando apenas um bilhete lacônico: "Não tente me encontrar. Estou bem. Não é culpa sua. Amo você mas isso é definitivo. Tenho vivido uma vida errada. Por favor, tente me perdoar."
Aos poucos, com base em uma série de saltos temporais e a tradicional habilidade narrativa de Ian McEwan, os marcos principais da história são contextualizados e associados também aos eventos principais da História nos séculos XX e XXI (crise dos mísseis em Cuba, queda do muro de Berlim, atentados terroristas, Brexit, Covid-19 etc), antes e depois da precoce relação de Roland Baines com a professora de piano e até o abandono da esposa. Desde então, Roland assumiu uma posição passiva com relação aos muitos desafios que a vida lhe apresentou e, apesar do seu talento em diversas áreas, tais como: música, literatura e tênis, o trauma por ter sido assediado no passado por uma mulher mais velha e a sua decorrente fixação por sexo fizeram com que ele não conseguisse se concentrar em nenhuma atividade em particular, assim como manter uma relação afetiva duradoura.
"Isso era a recordação de um insone, não um sonho. Era a lição de piano outra vez – um assoalho com ladrilhos cor de laranja, uma janela alta, um piano novo numa salinha vazia perto da enfermaria. Aos onze anos, ele tentava tocar uma versão simplificada daquilo que outros conhecem como o primeiro prelúdio de Bach do livro um do Cravo bem temperado. Mas não sabia de nada disso. Não se perguntou se era uma obra famosa ou obscura. Não tinha quando nem onde. Era incapaz de conceber que alguém algum dia se dera ao trabalho de escrevê-la. A música simplesmente estava ali, coisa de escola, ou sombria como uma floresta de pinheiros no inverno, só dele, seu labirinto privado de tristeza fria. Nunca o deixaria ir embora. / A professora estava sentada ao lado dele no banco comprido. Cara redonda, ereta, perfumada, rigorosa. Sua beleza permanecia oculta sob seu jeito de ser: nunca exibia uma expressão de mau humor ou alegria. Alguns meninos diziam que era louca, mas ele duvidava disso." (p. 11)
A trajetória de Roland Baines e as decisões (ou falta de decisões), assim como os incidentes que influenciaram no seu destino – temas abordados em outros romances de Ian McEwan – compõem o foco central do livro que nos faz pensar em nossa própria existência, erros e acertos: "Em momentos de tranquilidade e euforia comunicativa, Roland às vezes refletia sobre os acontecimentos e acidentes, pessoais e globais, minúsculos e grandiosos, que tinham formado e determinado o curso de sua existência. Seu caso não era especial – todos os destinos são constituídos da mesma forma." Outra questão interessante, será que realmente aprendemos com as lições que a vida nos ensina ou geralmente não há mais tempo para mudar, sendo a experiência um acessório inútil depois de certa idade? Como no provérbio: "A experiência é um pente que a vida nos dá quando já não temos cabelo".
"Roland achava que ia ficar de lado, testemunhando a travessia alegre dos berlinenses orientais para a parte ocidental. Em vez disso, foi levado por uma multidão triunfante que fluía para leste na direção da vasta e arenosa terra de ninguém. Resolveu se entregar. Uma parte da história da cidade dividida, do mundo dividido, era sua. Nas suas travessias na década de 1970, nunca poderia ter imaginado que uma cena como aquela pudesse acontecer, um acontecimento de significado tão vasto e carregado de uma carga simbólica tão imensa – se desenrolando no seio de uma multidão pacífica. Pelas mãos de pessoas como ele. Estar ali, pisando no espaço militarizado e proibido, era tão extraordinário como pisar na Lua. Todos sentiam isso. Roland sempre foi cético com respeito aos humorres instáveis das multidões, porém agora tinha a sensação de dissolver-se na alegria geral. A sinistra resolução da Segunda Guerra Mundial estava completa. Uma Alemanha pacífica se uniria. O império russo dissolvia-se sem derramamento de sangue. Uma nova Europa deveria emergir. [...]" (pp. 264-5)
O romance é uma excelente recomendação, tanto para os leitores já iniciados na obra de Ian McEwan quanto para aqueles que desejam conhecer algo daquele que é considerado um dos autores mais criativos e conceituados da literatura inglesa contemporânea. Um livro sensível sobre memória, amor e destino. Finalmente, não há como não torcer pelo personagem que acompanhamos ao longo de mais de quinhentas páginas e que já deixa saudades.
"Segundo Roland, um dos grandes inconvenientes de morrer consistia em ser removido da história. Tendo-a seguido até então, ele necessitava saber como as coisas evoluiriam. O livro de que precisava tinha cem capítulos, um para cada ano: uma história do século XXI. Tal como as coisas se encontravam, ele talvez não fosse além de um quarto do caminho. Uma olhadela de relance no índice bastaria. O aquecimento global catastrófico seria evitado? Uma guerra sino-norte-americana estava inscrita no desenho da história? Será que o surto global de nacionalismo racista cederia lugar a alguma coisa mais generosa, mais construtiva? Seremos capazes de reverter a grande extinção de espécies que está em curso atualmente? A sociedade aberta encontrará maneiras novas e mais justas de florescer? A inteligência artificial nos fará mais sábios, mais loucos ou irrelevantes? Poderemos gerenciar o século sem uma troca de mísseis nucleares? A seu ver, o simples fato de chegarmos intactos ao último dia do século XXI, ao final do livro, seria um triunfo." (p. 549)
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