Ian McEwan - Enclausurado

Literatura contemporânea
Ian McEwan - Enclausurado (título original: Nutshel) - Editora Companhia das Letras - 200 Páginas - Tradução de Jorio Dauster - Lançamento 03/10/2016.

O romance Enclausurado de Ian McEwan é de dar inveja a qualquer autor, tanto pela originalidade do tema quanto pela forma magistral como ele conduz a trama até o final. A narrativa é toda feita em primeira pessoa por meio do seu improvável protagonista, um feto no nono mês de gestação. De dentro da barriga da mãe ele acompanha impotente e com riqueza de detalhes todo o planejamento de um assassinato pela mãe e seu amante. O toque de mestre é que a vítima deste plano diabólico é ninguém menos que seu próprio pai e o amante da mãe, seu tio. É preciso muita coragem e segurança para um autor consagrado como McEwan se arriscar com um argumento tão louco assim. Passei todo a leitura imaginando como ele conseguiria dar um final satisfatório para este livro que, me arrisco a dizer, é o melhor dele depois do já clássico "Reparação" de 2001. A conclusão é inspirada e bem construída, não deixando o leitor se decepcionar, garanto.

As referências à clássica peça de Shakespeare, "Hamlet", são obvias a começar pela escolha do nome dos personagens, a mãe Trudy vem de Gertrudes, Rainha da Dinamarca na peça, enquanto o irmão, traidor e assassino do pai, é Claude inspirado em Claudius, irmão de Hamlet. No entanto, o livro de McEwan está muito mais inclinado para a comédia do que para o drama. Uma comédia bem nervosa e incômoda é verdade, mas que nos deixa sempre com um sorriso de satisfação diante de um texto inteligente e muito bem articulado. Desde a primeira página é colocada a situação inusitada do feto narrador para surpresa e deleite do leitor, leiam o trecho abaixo que entenderão melhor o que quero dizer e, tenho certeza, assim como eu, não conseguirão largar o livro até a última página.
"Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora as abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica. Isso foi na minha juventude despreocupada. Agora, em posição totalmente invertida, sem um centímetro de espaço para mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado noite e dia contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. Ouço conversas na cama sobre intenções letais e me sinto aterrorizado com o que me aguarda, pela encrenca em que posso me meter." (Págs. 9 e 10).
Mesmo sabendo das motivações mesquinhas do assassinato  a venda da antiga casa de família do pai em um bairro caro de Londres  o nosso simpático protagonista, ainda não nascido, não consegue odiar a mãe com quem compartilha, por meio de uma placenta saudável, taças de vinho Borgonha (o preferido dela) ou Sancerre (seu preferido). Isso não quer dizer que ele aceite passivamente toda a situação, mas como interferir nas ações que se passam em um estranho mundo externo que ele só conhece pelas sensações e descrições de outras pessoas? Por sinal, a relação psicológica de amor e ódio com a mãe é muito bem desenvolvida pelo autor, principalmente nas partes em que o protagonista enclausurado é testemunha involuntária da movimentada vida sexual dela com o detestável amante Claude.
"Nem todo mundo sabe o que é ter o pênis do rival do seu pai a centímetros do seu nariz. A essa altura tardia, eles deviam estar se contendo por minha causa. A cortesia, senão um motivo clínico, assim exigiria. Fecho os olhos, aperto as gengivas, me apoio nas paredes uterinas. Essa turbulência sacudiria as asas de um Boeing. Minha mãe estimula seu amante, o incita com gritos dignos de um parque de diversões. Parede da Morte! Toda vez, a cada movimento do pistão, temo que ele rompa a barreira, perfure os ossos ainda moles de meu crânio e irrigue meus pensamentos com a essência dele, com o creme abundante de sua banalidade. Depois, com o cérebro afetado, vou pensar e falar como ele. Serei o filho de Claude." (Págs. 28 e 29)
Neste romance, Ian McEwan mostra preocupação com a situação atual do planeta. O nosso feto-protagonista ainda não recebeu nem mesmo um nome mas, enclausurado em seu líquido amniótico, já tem noções da situação caótica da geopolítica internacional por meio dos programas de rádio e podcasts escutados pela mãe. "O socialismo em desgraça, o capitalismo corrompido, destrutivo e também em desgraça, nenhuma alternativa à vista". Assim como o nosso amigo que aguarda o nascimento, também nos sentimos impotentes diante de um mundo injusto e violento que não podemos mudar.
 "Fico acordado, escuto, aprendo. Hoje de manhã, bem cedo, menos de uma hora antes de o dia clarear, ocorreu algo mais pesado que de hábito. Através dos ossos de minha mãe dei com um pesadelo sob a forma de uma palestra normal. A situação do mundo. Uma especialista em relações internacionais, uma mulher sensata de voz grave, me informou que o mundo não vai bem. Analisou dois estados de espírito comuns: a autocomiseração e a agressividade. Cada qual uma escolha ruim para qualquer indivíduo. Combinadas, para grupos ou nações, uma mistura letal que ultimamente envenenou os russos na Ucrânia, como já havia acontecido com seus amigos, os sérvios, na parte deles do planeta. Fomos humilhados, então vamos provar quem somos. Agora que o Estado russo é o braço político do crime organizado, outra guerra na Europa está longe de ser inconcebível. Basta tirar o pó das divisões de blindados na fronteira sul da Lituânia, de onde podem alcançar as planícies ao norte da Alemanha. O mesmo veneno corrói os segmentos extremados do islamismo. A taça foi bebida até o fim, o mesmo brado se levanta: fomos humilhados, vamos nos vingar." (Pág. 32) 
Obviamente a situação de um narrador não nascido é completamente inverossímil e, ao mesmo tempo, maravilhosa. É justamente a deixa que um grande autor precisa para explorar com oportunismo a intimidade do comportamento humano em tudo que ele tem de melhor e pior. Na orelha do livro, a editora coloca uma comparação muito oportuna com Brás Cubas, o narrador defunto de Machado de Assis, o mesmo tipo de recurso ao absurdo que, conduzido com inteligência e criatividade, pode ser muito libertário tanto para o autor quanto para o leitor.

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