Philippe Ollé-Laprune - Américas, um sonho de escritores
Ao longo do século XX, a América Latina representou uma possibiidade de evasão para muitos escritores ocidentais desencantados com a estagnação da cultura europeia ou uma opção de fuga ao avanço dos governos totalitários que ameaçavam a liberdade de expressão e a própria vida desses autores em seus países de origem. Philippe Ollé-Laprune aborda em cada capítulo as experiências e o impacto em suas obras da vivência em um continente que apresentava na época a ilusão de uma possível utopia, assim como a promessa de um exotismo inspirador, mesmo que, em alguns casos, acabasse ocorrendo na prática uma distorção da realidade e uma tendência à ingenuidade com a mera reprodução de clichês sobre a sociedade e cultura locais.
Escritores tão diferentes em seus estilos quanto: Blaise Cendrars, Stefan Zweig e Georges Bernanos no Brasil; Roger Caillois e Witold Gombrowicz na Argentina; William S. Burroughs, Victor Serge, D.H. Lawrence, Malcolm Lowry, César Moro e os surrealistas franceses André Breton e Antonin Artaud, no México; Henri Michaux no Equador, Ernest Hemingway e Robert Desnos em Cuba, todos foram afetados de alguma forma por essa terra que "propõe certezas pouco rígidas e verdades mutáveis" com influência direta em seus livros; as respectivas experiências de viagem ou exílio são descritas no contexto de suas biografias, fazendo desta leitura uma excelente oportunidade para conhecer mais sobre a literatura ocidental no século passado.
A liberdade experimentada por William S. Burroughs e sua mulher Joan no México fez com que o consumo de drogas do casal atingisse níveis alarmantes, interrompido somente por breves períodos de desintoxicação, durante os quais o casal bebia tequila, da manhã à noite. A tendência autodestrutiva de Burroughs é, portanto, amplificada pela estadia no país que durou cerca de três anos. A tragédia que resultou nesta ausência de limites é narrada no trecho abaixo, um fato que Burroughs atribuiu a um "gênio do mal" do qual ele se livrou com o ato de escrever: "A morte de Joan me terá colocado em contato com o invasor, com o espírito do mal, e terá me obrigado a optar pela resistência durante toda minha vida, sem me dar outra escolha senão aquela de escrever e me libertar ao escrever."
"Quinta-feira, 6 de setembro de 1951, é o dia em que a vida de William S. Burroughs mudou de rumo. No México, onde mora com sua mulher Joan e seus filhos há quase dois anos, ele leva uma existência atormentada em que o álcool substitui a droga. Os conflitos com Joan são frequentes, e as aventuras homossexuais fugazes e por vezes sórdidas, fáceis de serem provocadas. Nesse dia, o casal que bebeu muito, vai à casa de de um amigo norte-americano onde o aprendiz-escritor deve vender um de seus revólveres a um compatriota. Eles fazem parte de um grupo de jovens norte-americanos que adoram festas e se aproveitam dessa sociedade permissiva para viver exaltações pouco admitidas em seu país de origem. Como sempre, a embriaguez de todos provoca fricções entre eles e Joan acaba por propor um desafio a Burroughs: mostrar sua habilidade no tiro. De comum acordo, escolhem brincar de Guilherme Tell, exímio arqueiro suíço. Joan coloca um copo sobre a cabeça, as testemunhas da cena ficam tensas, e o tiro dado. A bala aloja-se no crânio de Joan, que morrerá ao chegar ao hospital. Em razão desse gesto assassino, certamente involuntário, Burroughs experimenta uma perturbação profunda e, como dirá mais tarde, se torna então escritor. Como se já estivesse invadido por um demônio, que o perseguirá até o final de seus dias. [...]" (pp. 131-2)
Stefan Zweig, de família judia, sente a necessidade de se afastar da Europa na Segunda Guerra Mundial e decide viver com a mulher, Lotte, no Brasil, um país que o impressionou em uma visita que fez em 1936, quando escreveu para Romain Rolland: "Meu caro amigo, ao voltar da América do Sul, quero lhe contar um pouco sobre minhas impresões. Elas são excelentes. Os países são profundamente pacíficos, o lado terrível do nacionalismo não é ainda virulento, e há, entre os homens – graças ao espaço entre eles – menos ódio [...]" Publica durante sua estadia em nosso país: Brasil, um país do futuro, um livro criticado pelo excesso de lugares-comuns. Cometeu suicídio, juntamente com a mulher, em 1942 na cidade de Petrópolis, desiludido com a expansão do nazismo na Europa.
"Em seu total despojamento, a foto é tocante. Seria possível pensar em uma simples sesta. Em uma cama que parece modesta, Stefan Zweig está deitado de costas, com a boca levemente aberta. Como que impelida pela ternura, sua cabeça pende para o rosto de sua jovem esposa, Lotte, ela também deitada, de lado, com os olhos fechados, colada ao braço esquerdo do marido. Ele usa uma gravata escura e roupas tropicais – por causa do calor. A mão esquerda da esposa segura a mão direita do marido, como se quisesse dizer o quanto é apegada a ele e não poderia nem desejaria dele se separar. Aflora dessa imagem uma espécie de calma, uma tranquilidade transmitida graças ao último abandono desses dois corpos. Perante demônios e as trevas de seu tempo, preferiram se dar a morte. Nesse Brasil escolhido como último exílio, deram as costas para a vida; essa terra, que inspira tão facilmente a exuberância e se move sem esforço em celebração da beleza e da vida, tem também a capacidade de inspirar a tristeza e o desespero. O gesto último do casal Zweig não apenas demonstra o abatimento profundo, mas marca também o lado implacável de um destino que se cumpre, ainda que o universo circundante parecesse, antes, convidar Zweig a uma reconciliação com a existência. Ao menos é o que nota o leitor de sua correspondência e seus últimos escritos." (pp. 163-4)
Boa parte da vida de Ernest Hemingway foi passada em Cuba, onde comprou e fixou residência por vinte anos: "Não por acaso instalou uma grande distância entre ele e seu país natal, distância que se percebe em sua obra e em sua existência: apenas um único romance (Ter e não ter) se passa, em parte, nos Estados Unidos, onde jamais viverá de modo contínuo. Como para confirmar sua aversão pelos Estados Unidos, passará lá seus últimos meses, doente, antes de se suicidar." Viveu na Europa onde conheceu a guerra na Itália, a vida em Paris no entreguerras e a Espanha das touradas, mas a sua verdadeira paixão sempre foi Cuba, junto aos pescadores descobriu o prazer de viver entre as pessoas simples e a natureza, como declarou em seu discurso de recepção do Prêmio Nobel de Literatura em 1954: "É um prêmio que pertence a Cuba, junto com as pessoas de Cojímar, da qual sou cidadão."
"Para Hemingway, Cuba é, antes de tudo, a pesca e as águas claras. Ele não é insensível aos encantos do local, mas suas estadias não se assemelham àquelas que motivam os compatriotas da época. Até a revolução de 1959, a ilha é um lugar escorregadio onde a máfia impera, onde os parvos vão se acanalhar nos bares e nos bordéis que ali florescem. A América puritana joga-se nesse lugar, e deságua, particularmente em Havana, todas as suas inibições. Política e economicamente, os Estados Unidos têm mão forte sobre o país graças à emenda Platt, que lhes permite intervir assim que sentem seus interesses ameaçados. O escritor passa ali cada vez mais tempo, vai com frequência ao hotel Ambos Mundos, onde corrige as provas de Death in the Afternoon [Morte ao entardecer] e escreve uma parte de Adeus ás armas. Apesar de sua reputação de festeiro e grande beberrão, Hemingway é um trabalhador contumaz e disciplinado. Levanta-se muito cedo todas as manhãs, qualquer que seja seu estado ou a noitada da véspera, para escrever à máquina. A verdade é que ninguém sabe de fato até onde Ernest participa dos eventos dos norte-americanos que desembarcam na ilha, sujeitos descontrolados e ávidos por noites festivas e prostitutas baratas. Os cronistas da época não o veem participar de nada disso. Claro, é amigo do barman do Floridita, seu bar preferido, onde tenta bater recordes de consumo de daiquiri. Mas sabe como funciona a cidade e sua rejeição aos Estados Unidos faz com que evite os lugares onde pululam seus compatriotas. Integrou-se de tal maneira ao lugar que nada tem de banal turista." (pp. 206-7)
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