Lucia Berlin - Noite no paraíso: mais contos
Por alguma estranha combinação de motivos sem muita explicação prática, acabei não lendo a aclamada coletânea póstuma Manual da faxineira: contos escolhidos de Lucia Berlin (1936-2004), publicada no mercado norte-americano em 2015, onze anos portanto após a morte da autora. O livro foi um sucesso absoluto de público e crítica, tendo sido eleito entre os melhores do ano pelo New York Times Book Review, The Guardian, The Washington Post e El País. Lucia Berlin nasceu em Juneau, no Alasca, e passou sua infância e adolescência em diferentes locais, de acordo com a carreira do pai, engenheiro de minas, nos estados de Idaho, Montana e Arizona, e também no Chile. Como adulta, viveu no Novo México, México, Califórnia e Colorado, casou-se por três vezes e teve quatro filhos.
Em Noite no Paraíso: mais contos, as narrativas são também ambientadas em locais que Lucia Berlin morou: Chile, Texas, Novo México, México e Nova York, para citar apenas alguns, enquanto cuidava dos quatro filhos ela escrevia e trabalhava como professora de escola secundária, faxineira, telefonista e enfermeira, tudo isso lutando contra o alcoolismo. Essa experiência de vida está refletida em seus contos que talvez não sejam somente autobiográficos, mas construídos com personagens convincentes sem dúvida, seja quando ela assume a voz de uma menina de sete anos vendendo rifas juntamente com a amiga da mesma idade em Juarez ou uma adolescente de quatorze anos que se apaixona por um rico proprietário de terras no Chile, durante um final de semana no campo.
"Hope e eu tínhamos ambas sete anos. Acho que não sabíamos em que mês estávamos nem que dia era a menos que fosse domingo. O verão já vinha sendo tão quente e longo, com cada dia exatamente igual ao outro, que não lembrávamos de ter chovido no ano anterior. Pedimos ao tio John para fritar um ovo na calçada de novo, então pelo menos disso a gente se lembrava. / A família de Hope tinha vindo da Síria. Não era muito provável que, quando estavam sentados na sala, ficassem conversando sobre o clima do Texas no verão. Nem que explicassem que os dias eram mais longos no verão, mas depois começavam a ficar mais curtos. A minha família não conversava nunca. Eu e o tio John comíamos juntos às vezes. Mamie, a minha avó, comia na cozinha com Sally, a minha irmã mais nova. A minha mãe e o meu avô ou comiam fora ou em seus próprios quartos, quando comiam. / Ás vezes todo mundo ia para a sala. Para ouvir Jack Benny, Bob Hope ou Fibber McGee e Molly. Mas mesmo nessas horas ninguém conversava. Cada um ria sozinho, com os olhos grudados no olho verde do rádio, mais ou menos como as pessoas agora ficam com os olhos grudados na televisão. / O que quero dizer é que não havia como eu e Hope termos ouvido falar em solstício de verão ou de como sempre chovia em El Paso no verão. Nunca ninguém na minha casa falava sobre as estrelas, provavelmente ninguém nem sabia que às vezes no verão aconteciam chuvas de meteoros no céu do hemisfério Norte." (pp. 32-3) - Às vezes no verão
As narrativas lidam com gente simples e suas existências tragicômicas, desníveis sociais e questões de gênero, com exceção do conto que empresta o título à coletânea e que reúne Elizabeth Taylor, Richard Burton, Ava Gardner durante a filmagem de Night of the Iguana em um bar de hotel na cidade de Puerto Vallata no México; todos estão drogados ou alccolizados e ocorre um caso amoroso fracassado de um morador local com Ava Gardner. De uma forma ou de outra, os temas principais autobiográficos são recorrentes: alcoolismo, solidão, amores frustrados e traumas familiares, contudo sempre nos surpreende a forma leve e bem-humorada como a autora lida com personagens inadequados e seus dramas, mesmo quando escreve sobre um acidente fatal em "Do pó ao pó".
"Seus pais não foram à corrida. Estavam sentados à mesa da sala de jantar, tomando chá com biscoitos. O chá do sr. Templeton na verdade era rum, que ele tomava numa caneca azul. A mãe de Michael estava chorando, enlouquecida de preocupação com a corrida. Ele ainda vai acabar me matando, disse ela. O sr. Templeton disse que estava torcendo para que Mike quebrasse aquela maldita cabeça dura dele. Não era só por causa da corrida… os dois tinham conversas desse tipo praticamente todo dia. Embora fosse um herói, Michael ainda não tinha arranjado um emprego três anos depois de voltar da guerra. Bebia, jogava e se metia em encrencas sérias com mulheres. Conversas telefônicas sussurradas e visitas tarde da noite de pais ou maridos, que saíam batendo a porta com toda a força. Mas as mulheres só ficavam cada vez mais fascinadas com ele e havia gente que chegava a insistir em lhe emprestar dinheiro. / O estádio estava lotado e festivo. Os pilotos e as suas equipes eram glamourosos, charmosos italianos, alemães, australianos. Os principais competidores eram a equipe britânica e a argentina. Os ingleses pilotavam BSAs e Nortons; os argentinos, Moto Guzzis. Nenhum dos pilotos tinha a desenvoltura de Michael, seu ar imperturbável, sua echarpe branca. O que estou querendo dizer é que, mesmo com o choque da sua morte, mesmo com a moto em chamas, com o sangue dele no muro de concreto, seu corpo, a gritaria e as sirenes, tudo teve aquela impassibilidade relaxada tão característica de Michael. O fato de ser a última corrida e de ele tê-la vencido. Johnny e eu não falamos nada, nem sobre o terror nem sobre o drama do que aconteceu." (pp. 77-8) - Do pó ao pó
Valoriza esta edição uma biografia para entender o contexto atribulado da vida da autora, um livro muito recomendado e, certamente, candidato às melhores leituras do ano. Lucia Berlin não obteve o reconhecimento da sua obra em vida, mas sabia a importância de uma boa história, como lembra o seu filho, Mark Berlin, no prefácio: "Mamãe escrevia histórias verdadeiras; não necessariamente autobiográficas, mas quase lá. As histórias e lembranças da nossa família foram sendo remodeladas aos poucos, embelezadas e editadas, a ponto de muitas vezes eu não saber ao certo o que de fato aconteceu. Lucia dizia que isso não tinha importância: o que importa é a história."
"Rapaz, como essa clínica de desintoxicação enche quando chove. Estou de saco cheio de ficar na rua, sabe? Então, eu e a minha velha resolvemos ir pra arquibancada... é bom lá, o maior silêncio, espaço à beça. Aí começou a chover e ela começou a chorar. Eu perguntei pra ela um montão de vezes: Por que você está chorando, amor? Por que você está chorando? Quando finalmente me respondeu, sabe o que ela disse? 'As guimbas de cigarro estão ficando todas molhadas.' Porra, aí eu bati nela. Ela ficou uma fera, enlouqueceu pra valer, daí a polícia levou ela pra cadeia e me trouxe pra cá. Eu aguento ficar sem beber. O problema é que, quando fico sóbrio, começo a pensar. Alcoólatras pensam mais do que a maioria das pessoas, essa é que é a verdade. Eu só bebo pra abafar as palavras. Porra, e seu fosse baterista? Na última vez que eu vim pra cá tinha uma Psychology Today que falava de beberrões que vivem na rua. Lá provava que os bebuns pensam mais. Dizia que eles tinham resultados melhores em testes do que as pessoas normais, inclusive em testes de memória. Só tinha uma coisa em que eles se davam mal, eram uma negação completa, mas eu não consigo lembrar o que era." (pp. 253-4) - Dia chuvoso
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