Emmanuel Carrère - O Reino

Literatura contemporânea francesa
Emmanuel Carrère - O Reino - Editora Alfaguara - 440 Páginas - Tradução de André Telles - Capa: Thiago Lacaz - Lançamento no Brasil: 2016.

É difícil de acreditar, mas houve uma época, no início dos anos 1990, em que Emmanuel Carrère foi “tocado pela graça”, como ele mesmo afirma. Esse inusitado fervor religioso pela fé cristã durou quase três anos, período em que ele comparecia diariamente à missa e preenchia cadernos com comentários sobre versículos do Evangelho segundo São João. Anos mais tarde, decide escrever O Reino em tom autobiográfico — como já se tornou comum em seu estilo — abordando as origens do cristianismo no final do primeiro século. Assume, então, uma postura francamente cética, ou no mínimo ambígua, sem conseguir conter a ironia brutal sobre sua antiga fé, como quando se espanta que pessoas normais e inteligentes realmente acreditem “que um judeu de dois mil anos atrás nasceu de uma virgem, ressuscitou três dias após ter sido crucificado e retornará para julgar os vivos e os mortos.” 

Paulo de Tarso e Lucas, dois personagens centrais na divulgação do cristianismo, são descritos por Carrère como homens complexos e contraditórios. Paulo, com sua missão evangelizadora, surge como um estrategista religioso, alguém que molda a doutrina cristã com uma intensidade quase obsessiva. Já Lucas, autor do Evangelho que leva seu nome e dos Atos dos Apóstolos, é retratado como um escritor — talvez um alter ego do próprio Carrère? A abundância de citações e detalhes sobre os Evangelhos pode se tornar um pouco entediante e cansar em um livro com mais de 400 páginas, mas ao mesmo tempo o leitor é recompensado com amostras da cultura e da inteligência inegáveis do autor, que justificam plenamente o investimento de tempo.

"Conhecemos o procedimento. Teve início há dois mil anos e nunca mais foi interrompido. Antigamente, e ainda hoje em determinados ritos, era praticado realmente com pão: o pão mais banal, o que o pedreiro amassa. Hoje em dia, entre os católicos, são rodelinhas brancas, com consistência e gosto de papelão, chamadas hóstias. Num certo momento da missa, o padre declara que elas se transformaram no corpo de Cristo. Os fiéis fazem fila para receber, sobre a língua ou na concha da mão, cada qual a sua. Retornam a seus lugares, cabisbaixos, pensativos e, se acreditam naquilo, interiormente transformados. Esse rito incrivelmente bizarro, que se reporta a um fato preciso ocorrido em torno do ano 30 de nossa era e que está no cerne do culto cristão, é ainda hoje celebrado no mundo inteiro por centenas de milhões de pessoas que, como diria Patrick Blossier, não obstante, não são loucas. Algumas, como minha sogra ou minha madrinha, praticam isso todos os dias sem exceção e, se porventura ficam doentes e não podem ir à igreja, providenciam para que levem o sacramento às suas casas. O mais bizarro é que a hóstia, quimicamente, não passa de pão. Seria quase tranquilizador se fosse um cogumelo alucinógeno ou um pingo de LSD, mas não: é simplesmente pão. Ao mesmo tempo, é Cristo." (pp. 72-3)

Somente Emmanuel Carrère com o seu desenfreado narcisismo autobiográfico poderia entremear neste livro algumas páginas comentando sobre o seu hábito de consumir vídeos pornográficos na internet, mais particularmente sobre masturbação feminina. Com seu estilo único que mescla autoficção, romance, ensaio e autobiografia, o autor surpreende ao transformar o texto bíblico em ambiciosa matéria literária, e os apóstolos em personagens de um romance histórico que oscila todo o tempo entre o sagrado e o profano.  

"Recapitulemos. Lucas é um grego instruído que simpatiza com a religião dos judeus. Depois de seu encontro com Paulo, rabino controverso que faz seus adeptos viverem num estado de intensa exaltação, aderiu a um novo culto, variante helenizada do judaísmo que ainda não se chama cristianismo. Em seu vilarejo da Macedônia, ele é um dos pilares do grupo convertido por Paulo. Por ocasião da coleta, se oferece como voluntário para acompanhá-lo a Jerusalém. É a grande viagem de sua vida. A despeito do aviso de Paulo aos seus companheiros — a visita à matriz arrisca não ser propriamente tranquila —, Lucas não imaginou que a coisa correria tão mal, que seu mentor fosse tão execrado na cidade sagrada dos judeus. Viu-o ser acusado não por rabinos ortodoxos, como sabia que podia acontecer, mas pelos dirigentes de sua própria seita. Submetido a uma provação humilhante, denunciado, quase linchado, salvo por um triz e, para terminar, detido pelos romanos." (pp. 226-7)

Depois de lermos O Reino, conduzidos — e muitas vezes driblados — pela inteligência cortante e ironia de Emmanuel Carrère, é inevitável nos perguntarmos: afinal, ele acredita ou não no Reino? Essa questão permanece em suspenso ao longo da narrativa, marcada por idas e vindas entre fé e desconfiança, confissão e provocação, como neste trecho: "Não, não acredito que Jesus tenha ressuscitado. Não acredito que um homem tenha voltado dos mortos. Entretanto, que seja possível acreditar nisso, e por eu mesmo ter acreditado, isso me intriga, fascina, perturba, abala — não sei qual é o verbo mais apropriado. Escrevo este livro para não achar que, deixando de crer, sei mais sobre isso do que aqueles que creem e do que eu mesmo quando acreditava. Escrevo este livro para duvidar da minha própria opinião."

"No dia seguinte, domingo, depois do almoço, o retiro chega ao fim. Antes de nos separarmos, de voltar cada um para sua casa, todo mundo entoa um cântico tipo 'Jesus é meu amigo'. A bondosa senhora que cuida de Élodie, a adolescente com Síndrome de Down, faz o acompanhamento ao violão e, como é um cântico alegre, todos se põem a bater mãos e pés e a se requebrar como numa boate. Nem com toda a boa vontade do mundo consigo me juntar sinceramente a momento de tão intenso kitsch religioso. Cantarolo vagamente com a boca fechada, movo-me feito um pêndulo, espero terminar. Subitamente, ao meu lado, surge Élodie, que puxou uma espécie de quadrilha. Ela se planta à minha frente, sorri, atira os braços para o alto, ri abertamente, e, acima de tudo, olha para mim, me incentiva com o olhar, e há tamanha alegria nesse olhar, alegria tão cândida, confiante e sincera, que começo a dançar como os outros, a cantar que Jesus é meu amigo e, cantando, dançando, olhando para Élodie, que agora escolheu outro parceiro, lágrimas me vêm aos olhos e sou forçado a admitir que nesse dia, por um instante, entrevi o que é o Reino." (p. 433)

Literatura contemporânea francesa
Sobre o autor: Emmanuel Carrère nasceu em Paris, em dezembro de 1957. Formado no Institute d'Études Politiques, é escritor, roteirista e diretor. A novela O bigode foi adaptada para o cinema pelo próprio Carrère, e A colônia de férias conquistou o prêmio Femina de 1995. O adversário, Um romance russo, Ioga, Outras vidas que não a minha e Limonov — vencedor do prêmio Renaudot — são seus outros livros publicados no Brasil.

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