Erico Verissimo - Incidente em Antares
Lançado originalmente em 1971, Incidente em Antares é o último romance da bibliografia de Erico Verissimo (1905-1975). Esta obra marcou minha adolescência e já figurava há algum tempo na lista de releituras pendentes. O que a distingue de outros títulos do Realismo Fantástico da época é sua estrutura dividida em duas partes bem definidas. Na primeira, o autor apresenta uma ampla contextualização da fictícia cidade de Antares — situada na fronteira entre Brasil e Argentina — associada a episódios e personagens reais da política brasileira. Destacam-se os sucessivos governos da era Getúlio Vargas: desde o período de 1930 a 1945, que culminou na ditadura do Estado Novo, passando pela fase democrática de 1951 até seu suicídio em 1954, e avançando até a chamada Revolução ou Golpe de Estado de 1964, que deu início ao longo regime militar. Já na segunda parte, ocorre o incidente sobrenatural, concebido por Verissimo como tendo acontecido em 13 de dezembro de 1963, cujas consequências sobre a população local são narradas até o ano de 1970.
O romance revela-se extremamente corajoso ao destacar as torturas e demais violências do regime militar, que atingia seu ponto mais crítico na época do lançamento do livro, no início dos anos 1970. É, de fato, surpreendente que a obra tenha passado ilesa pela censura — talvez respaldada pelo prestígio de Erico Verissimo, tanto no cenário nacional quanto internacional. A ironia da estratégia de divulgação, já antevendo possíveis entraves com os censores, estampava na tarja promocional a provocativa frase: “Num país totalitário este livro não seria publicado.” Uma característica importante do estilo empregado pelo autor, apesar da gravidade do tema, é a bem-humorada sátira social que deixa o leitor todo o tempo com um sorriso no rosto. De fato, a obra guarda algumas similaridades com o estilo de O Bem-Amado de Dias Gomes (1922-1999) outro marco da crítica social e política através do humor e do absurdo, retratando a corrupção e as contradições da sociedade brasileira.
"O incidente que se vai narrar, e de que Antares foi teatro na sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963, tornou essa localidade conhecida e de certo modo famosa da noite para o dia — fama um tanto ambígua e efêmera, é verdade — não só no estado do Rio Grande do sul como também no resto do Brasil e mesmo através de todo o mundo civilizado. Entretanto, esse fato, ao que parece, não sensibilizou até agora geógrafos e cartógrafos. Tão insólitos, lúridos e tétricos — e esses adjetivos foram catados no artigo alusivo àquele dia aziago, escrito pelo jornalista Lucas Faia para o seu diário A verdade, porém jamais publicado, por motivos que oportunamente serão revelados —, tão fantásticos foram esses acontecimentos, que o pe. Gerôncio chegou a exclamar, dentro de seu templo, que aquilo era o começo do Juízo Final. Nesse momento de susto e angústia coletiva, um cético gaiato, desses que costumam menosprezar a terra onde nasceram e vivem, murmurou: 'A troco de que Deus havia de começar o Juízo Final logo neste cafundó onde Judas perdeu as botas?'. Bem, mas não convém antecipar os fatos nem ditos. Melhor será contar primeiro, de maneira tão sucinta e imparcial quanto possível, a história de Antares e de seus habitantes, para que se possa ter uma ideia mais clara do palco, do cenário e principalmente das personagens principais, bem como da comparsaria, desse drama talvez inédito nos anais da espécie humana." (p. 17) - Trecho da primeira parte - Antares
O incidente que norteia toda a narrativa é deflagrado quando — devido a uma greve geral na cidade de Antares — os coveiros se recusam a enterrar sete defuntos e os mortos, não sepultados, apesar de já apresentarem sinais de decomposição, retornam à vida e passam a denunciar em praça pública o comportamento hipócrita dos parentes e amigos, revelando a decadência moral e a corrupção da sociedade. Como as personagens são cadáveres, estão livres das máscaras sociais e podem então fazer suas criticas e denúncias livremente. Os sete mortos representam diferentes classes sociais — desde Erotildes, prostituta vítima de tuberculose, até Quitéria Campolargo, matriarca da cidade, falecida por infarto do miocárdio. Por sinal, as duas famílias dominantes na política local, os Vacarianos e os Campolargos — que também ditavam as regras do comportamento moral em Antares —, inicialmente inimigos mortais, acabam pacificados em nome de interesses políticos nacionais mais abrangentes e ambiciosos por ninguém menos que Getúlio Vargas, em um dos episódios mais cômicos do romance.
"Um dia, no princípio do verão de 1925, apareceu sorrateiro em Antares um membro da prestigiosa família Vargas de São Borja. Chamava-se Getúlio, tinha quarenta e dois anos de idade, era bacharel em direito e ocupava então uma cadeira de deputado na Câmara Federal, como representante do Partido Republicano de seu estado. Homem sereno, de feições e maneiras agradáveis, sabia usar a cabeça com lúcida frieza e possuía qualidades carismáticas ainda não de todo reveladas plena e publicamente. Dizia pouco mas perguntava muito. Frio, solerte, sabia jogar com dois fatores importantes na vida: o tempo e as fraquezas humanas. Usou de artimanhas tais, que naquele dia conseguiu reunir Xisto Vacariano e Benjamim Campolargo na casa dum amigo comum, homem apolítico e geralmente benquisto na cidade. [...] Os dois velhos inimigos naturalmente não se apertaram as mãos e nem sequer rosnaram a menor palavra um para o outro. Estavam ambos meio desarvorados. Aquilo então era coisa que se fizesse? Olhavam para Getulio Vargas com uma expressão de censura e zanga. O deputado de São Borja, abrindo o seu sorriso mais sedutor, de excelentes dentes, convidou-os a sentarem-se, perguntando-lhes se queriam beber alguma coisa gelada. Nenhum dos dois queria. Sentaram-se com uma certa relutância pesada, cada qual na sua poltrona, separados por três metros de tapete. Getulio Vargas acendeu com pachorra o seu charuto e por alguns instantes permaneceu silencioso a olhar, de um para outro, os dois velhos, como um árbitro que, no meio da arena, prepara-se para anunciar ao público a luta de boxe que se vai travar entre dois campeões de peso pesado." (pp. 47-8) - Trecho da primeira parte - Antares
Vale destacar a estratégia do autor ao utilizar múltiplas vozes, mesmo sob a condução de um narrador onisciente, conferindo diferentes pontos de vista e autenticidade às personagens. Além da polifonia, outro elemento que reforça a verossimilhança da obra — apesar do absurdo do incidente dos mortos que retornam à vida — é a intertextualidade, que coloca personagens reais em confronto com os ficcionais. Exemplo disso é a citação ao próprio Erico Verissimo e a presença de Getúlio Vargas na trama. Incidente em Antares é, sem dúvida, um clássico altamente recomendado, que ainda preserva sua relevância ao denunciar, com inteligência e ironia, o que há de melhor e pior na natureza humana, além de sintetizar de forma brilhante os principais eventos políticos da história nacional no século XX.
"Os sete mortos separam-se. A praça está deserta. As janelas e portas das casas, em derredor, fechadas. D. Quitéria lá se vai, gingando e ao mesmo tempo rígida, como uma imagem carregada em andor. Um cachorro sem dono a segue, de longe, depois estaca e, com o rabo entre as pernas, o focinho erguido para o céu, começa a ganir agonicamente. A matrona dos Campolargos está agora diante de seu palacete, cujas portas e janelas se acam cerradas. Ela entra pelo portão lateral, atravessa o jardim deserto de humanidade - mas lá estão as suas rosas queridas, ela as acaricia com a ponta dos dedos - e vai direito à porta dos fundos, sobe os três degraus que levam ao corredor, segue ao longo deste em passadas inaudíveis, passa sem ser vista pela porta da cozinha, onde as suas negras conversam animadamente, preparando o café da manhã, e segue silenciosa rumo da sala de jantar, de onde vem um rumor de vozes masculinas e femininas. Escondida atrás da folha duma porta entreaberta, a velha fica a espiar e ouvir suas quatro filhas e seus quatro genros, que se acham sentados em torno da mesa, no centro da qual se vê um escrínio aberto, o interior forrado de veludo cor de ametista, com um espelho na parte interna da tampa. Ao redor do escrínio estão enfileiradas as joias que a morta queria levar consigo para o túmulo: o anel de brilhante, o colar de pérolas, os brincos de esmeraldas, broche de rubis, a pulseira de ouro maciço... [...]" (pp. 271-2) - Trecho da segunda parte - O incidente
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