Kátia Bandeira de Mello - Molduras

Literatura brasileira contemporânea
Kátia Bandeira de Mello - Molduras
Editora Urutau - 262 Páginas - Projeto gráfico: Wladimir Vaz Mourão - Lançamento: 2024.

O mais recente lançamento de Kátia Bandeira de Mello, Molduras, é uma coletânea de contos que reafirma o estilo da autora em suas obras anteriores: uma prosa sofisticada, frequentemente bem-humorada, que transita entre o surrealismo e a literatura experimental. O livro resulta de um cuidadoso exercício de intertextualidade, que utiliza a citação a escritores de diferentes épocas e estilos, mas não se restringe à literatura, incorporando também referências às artes plásticas, psicologia e cinema, finalizando em um processo criativo próximo da técnica da colagem. Em cada conto o leitor é desafiado a subverter a noção de tempo e espaço, ficção e realidade, enquanto a arte assume o protagonismo dessas histórias insólitas — por vezes absurdas, mas sempre capazes de provocar reflexão.

Cada conto reserva uma surpresa ao leitor, que se depara com uma verdadeira galeria de personagens e presenças ilustres, Paul Auster e Siri Hustvedt surgem em um concorrido lançamento do livro de fotografias de Beowulf Sheehan, especialista em retratar escritores célebres, numa livraria do Soho (Balada de loucos - p. 24); o cineasta do expressionismo alemão Fritz Lang é evocado em citações recorrentes (Metrópolis - p. 55); Charles Baudelaire, envenenado pela “fada verde”, perambula de asilo em asilo (Cena de hotel - p. 99); e Franz Kafka, inevitável, senta-se à mesa posta para o café (O amerikano - p. 188).  A lista se expande em uma constelação de autores e poetas — Edgar Allan Poe, Emily Dickinson, Fiódor Dostoiévski, Ivan Gontcharov, Carlos Drummond de Andrade — além de cineastas como Agnès Varda, Jean-Luc Godard e Lin Cheng-sheng.

"A maior praga que Deus pôs na Terra foi o trabalho, e, desde cedo, aprendi a ser indolente. Sob a tutela de sábios mestres, aprendi a evitar esforço. Venho de uma família habituada a sombra e água fresquíssima. Devido às oscilações da Bolsa, perdi parte da herança antes que o meu pai sucumbisse a uma enfermidade fatal que sugou os nossos recursos. Meti-me em aventuras, pirâmides menos sólidas do que as egípcias e me viro no velho apartamento oceânico. Subo e desço pelo antigo elevador com uma porta de ferro que me exige abri-la e fechá-la para que a máquina ande e reclamo dela assim como me queixo das mulheres que esperam de mim prazer enquanto concentro a energia para o meu deleite corporal. Passo meses em abstinência sexual. Para me tirarem da cama, é como arrancar a raiz de uma árvore de 1601, prefiro descansar à moda de Oblomov, personagem literário que tanto admiro. Oblomov dos Trópicos, sou eu, disso me orgulho sem disfarçar. Não vejo necessidade para disfarces. Sou firme. Estou certo da minha indolência e da desmedida displicência que a acompanha. Sigo o andar da carruagem fantasmagórica que percorre a aleia das palmeiras no jardim botânico que visito em dias quando posso desperdiçar forças físicas numa caminhada singela." (p. 20) - Trecho do conto Sangue tinto

No entanto, além das figuras célebres, emergem também personagens fascinantes e ilustres desconhecidos do grande público. Entre eles, destacam-se as duas senhoras que trocam correspondência — uma delas escrevendo diretamente da posteridade, em lembrança de suas épocas de lobas (Correspondência epistolar entre amigas - p. 32), Lady Lay e Velvet que dividiam os turnos de limpeza dos banheiros em um posto de gasolina (Ao pé da montanha - p. 38), o agente 326 que relembra uma ex-amante, loura de pernas como as da poltrona a la Voltaire, ambos, o agente e a poltrona, não a loura, retornarão em outros contos (objetiva no Agente 326 - p. 58). Já na sequência final, encontramos um conjunto de personagens igualmente marcantes: Julio C., dilacerado pela morte de A.; Zibigniew; e o alfaiate Jakob com sua esposa Margarida. Convém permanecer atento, pois muitos desses personagens “ficcionais” acabam interagindo com figuras reais.

"O seu maior ato de bravura foi deixar os insetos entrarem no apartamento. Removeu o painel com a tela que impedia os bichos e resignou-se à invasão que não tardou a acontecer. Não sabia bem por que parou de achar que fazia algum sentido criar uma separação entre ela e aqueles seres voadores, alguns luminosos, outros escuros como a noite, cada qual com uma determinada intenção. As traças foram as primeiras a se aventurarem e alucinarem ao redor das lâmpadas acesas como se estivessem drogadas pelos raios de luz, giravam e quase imploravam para serem internadas numa casa de loucos. Eram traças pequenas, com asas curtas e secas. Na rua, ela quase pisara noutra espécie de traça, com asas gigantes e coloridas, quase como se houvesse se fantasiado de borboleta. Será que toda traça sonha em ser borboleta a partir de uma percepção de sua fealdade, da sua condição inferior a toda a graciosidade e charme de uma borboleta? Será que as traças têm consciência, ou ciência, de sua condição e carregam consigo o sofrimento por não estarem no corpo de borboletas, as bailarinas de jardim? Enquanto as borboletas exibem leveza e carregam cores vívidas nas asas, as traças não passam de invasoras noturnas, possuem o espírito das bruxas e não de fadas. Umas, as bruxas. Outras, as fadas. Talvez sequer exista uma terceira categoria." (p. 89) - Trecho do conto Coragem

Em O dia, encontramos uma sensível composição que descreve as manhãs com a inusitada simplicidade de um poema que me lembra Wisława Szymborska: "Para cada cidade, corresponde uma manhã distinta e um horário automático que chama os corpos, há uma hora marcada combinada por telepatia felina [...] As manhãs preferem silêncio, com raras intermissões bizarras e inconvenientes, castelinhos de areia pisoteados, eis o que são os distúrbios apregoados sobre o silêncio, as manhãs vem cheias de promessas, principalmente sobre as manhãs seguintes, o que fazer com elas se vierem a existir [...] As manhãs de domingo são uma espécie distinta e fastidiosa, quem sabe se os domingos deveriam existir [...]" .

Já o conto de encerramento da coletânea, Trailer - Zonas de tempo, o mais extenso do livro, descreve um escritor que viaja a Praga durante o período da pandemia, um momento na história da humanidade que se mais assemelha a uma delirante narrativa surrealista. Por vezes a ficção não consegue mesmo competir com a realidade. 

"Algo sobre se levantar sozinho quando o dia começa e contar os fragmentos da dor, o corpo que dói, dizem que é o corpo que reclama, as manhãs são infinitas em suas latitudes exponenciais, as aves perfuram-nas, não há nada de científico nas manhãs, as auroras começam na lembrança de um ponto no penhasco voltado para o mar, é certo que lá esteja a retumbar, as bicicletas voadoras, o vendedor ambulante, um silêncio de sepulcro da memória quando tudo mais acontece no mundo, as plantas e os carros voam no sentido do lado oposto, uma oposição de lados, assim se vive, duas paredes, dois lados, duas loucuras, e o arcabouço de imensas impossibilidades humanas resvala nas fendas do amanhã, acelerar o que está recôndito. / Há cansaço nas pernas, há um peso matinal para que as pernas não se movam, há o trabalho que esperar, o livro por acabar, o livro inacabável, há os compromissos sem risos, as saudades descompassadas, há o que foi e não volta a ser, há amores incompletos, há um esgotamento inexorável, há o preço quando se pede espaço e solidão, existem as medidas sanitárias, existe uma cabeça de pensamentos obsessivos, e a capacidade de fabular, e os traços nos caminhos desenhados na areia, e ferraduras largadas pelos cavalos mortos, e fechaduras enferrujadas, e as portas e portões de Paris, nostalgia parisiense, recordar as manhãs de Paris, um despertar distinto, o café mais forte, a brisa, o sol encoberto, há luz dispersa, o céu não tão azul, os passos audíveis nas calçadas, os saltos dos sapatos são tão sólidos, saltam de retângulo em retângulo, e os soldados napoleônicos marcham como se fossem recém-chegados da Rússia, elegantes, a guerra não os havendo tocado ou sujado, as ruas se retroalimentam." (pp. 223-4) - Trecho do conto O dia

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Kátia Bandeira de Mello é escritora, poeta e artista visual, com formação em Direito Internacional Privado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade de Londres e a NYU School of Law. Natural do Rio de Janeiro, é radicada nos Estados Unidos desde 1998. Seus livros publicados pela editora Confraria do Vento são: Colisões Bestiais (Particula)res (2015); Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas (2017); Caderno de Artista (2022) e A Patafísica do Quadrado, um romance na rota das galochas (2022). Antes, publicou Forrageiras de Jade (2009) e Forasteiros (2013) pelo Projeto Dulcineia Catadora.  

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