Kátia Bandeira de Mello - A patafísica do quadrado

Literatura brasileira contemporânea
Kátia Bandeira de Mello - A patafísica do quadrado: um romance na rota das galochas - Editora Confraria do Vento - 396 Páginas - Imagens de capa e miolo: Kátia Bandeira de Mello - Lançamento: 2022.

O surrealismo na literatura ficou marcado pela fase inicial compreendida entre 1919 e 1925 na França, destacando: Louis Aragon, André Breton, Paul Éluard, Benjamin Pet e Philippe Soupalt, autores que tinham a intenção de exprimir o inconsciente do homem que se revela no sonho, nas associações de ideias, nas liberdades de linguagem e em particulares condições psíquicas, quer naturais quer induzidas artificialmente. No entanto, pouco se fala em um dos maiores influenciadores do movimento, o excêntrico Alfred Jarry (1873-1907), poeta, romancista e dramaturgo francês, mais conhecido por sua peça Ubu Rei (1896), criador da patafísica, a ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções, com base no humor irônico e nonsense, transformando o real em absurdo.

O romance mais recente de Kátia Bandeira de Mello é uma homenagem a Alfred Jarry. Redescobrindo a patafísica, um conceito cada vez mais atual, a autora apresenta um emaranhado de narrativas burlescas, personagens bizarros e uma série de referências literárias como o escritor Apolônio, autor de Supermacho II - continuação patafísica, amante de churros recheados com doce de leite e que pretende se tornar um detetive selvagem latino-americano, Pietro Paolini, famoso tenor sequestrado pela Sociedade dos Cirurgiões Russos, comandada por Madame Petróvska, torturado na cama de Procusto, dispositivo citado na mitologia grega que estica as vítimas, o engraxate Maldonado criador do ogro El Pepe Panta a partir de um caroço de abacate que se transforma em um oráculo para a população.

"O policial chutou o tronco do morto três vezes para certificar-se de que estava abaixo do horizonte. Zumbido de sirena. Nenhuma ambulância à vista. Ronco de motores, primeiro em fuga, depois se aproximando da cena disparada pela bomba e um grito terminal: Allahu Akbar. Os rostos se voltavam para os restos atirados ao asfalto, fragmentos de pele e pano, quase nada sobrara do corpo, enquanto o grito se perpetuava, ecoando as palavras viajantes Allahu Akbar pela praça quadrada erguida em homenagem ao grande Alfred Jarry, o mais científico dos cientistas. / Sentado em um dos bancos de madeira, com os dois pés tocando na terra, novato na praça, Apolônio admirava a barafunda sob a carraspana do céu retraído, o céu que recusava a alma precipitada do terrorista e acobertava a excitação cerebral dos observadores. Na mão de Apolônio, o churro de doce de leite mordido e vazando óleo no guardanapo subia e descia através dos gestos manuais estimulados pela fome de um homem nem um pouco atormentado por comer diante de um estouro daqueles. [...]" (pp. 19-20)

Esses personagens e muitos outros convivem na praça Alfred Jarry em Iztépete, obscura cidade na América Latina, objeto de um experimento guiado por agentes russos do Alto Comando de Lubyanka, contaminando os habitantes com o terrível ergot, uma droga fermentada nos pães matinais que induz o fervor religioso, produzindo homens e mulheres-bomba para atentados terroristas. O ergotismo da população faz com que El Pepe Panda receba uma série de peregrinos ansiosos por suas "mensagens obscenas, receitas de xarope para a tosse, dicas de números lotéricos, interpretação de sonhos ou pesadelos, previsões astrais e planos de vingança odiosa." Interessante como a patafísica nem sempre consegue competir com os delirantes absurdos da realidade, por exemplo o fanatismo religioso.

"Em ondas de movimentos cósmicos, uma ópera bufa se instalou no coração do Quadrado K-4. Milhares de seguidores apareceram do nada, organizaram-se em filas, cobriram a praça Alfred Jarry e ruas adjacentes com os seus corpos. Logo, camelôs instalaram-se para vender água e churros aos peregrinos. Ambulantes ofertavam velas e lenços para os chorosos, criando concorrência para os cegos da igreja, exímios comerciantes de velas. Viajantes brotavam das aldeias e lugarejos, pontos de distribuição dos pãezinhos à base de esporão de centeio. Alguns haviam caído no golpe da fada de látex quando Maldonado fora apelidado de El Pepe Hada, outros de nada sabiam. Não importava gente nova e gente velha, estavam dispostas a acreditar em uma nova divindade. Rumores circulavam sobre a impossibilidade de se tocar no ogro, uma frustração para os afeitos ao tato, para os que tinham dedos curiosos. No entanto, Maldonado agia irredutível: mandava a todos que encolhessem os dedos e permitia aos pagantes que cutucassem o monstro com uma vareta, fazendo-lhe cócegas de leve e deixando emanar uma gargalhada bronca." (pp. 97-8)

Kátia Bandeira de Mello nos apresenta um criativo exercício de intertextualidade ao utilizar como inspiração para o seu romance uma série de gêneros literários e autores de diferentes épocas, tais como François Rabelais e Roberto Bolaño. Identificando ou não todas as referências literárias, mitológicas e filosóficas da autora, verdadeiro desafio que requer alguma pesquisa, o leitor certamente vai se divertir e refletir sobre o absurdo da nossa própria época com o inteligente humor nonsense de A patafísica do quadrado: um romance na rota das galochas.

"Ladeando a praça Alfred Jarry, encontra-se entre os pontos K-2 e K-3 do quadrado a construção centenária da Catedral, por uns considerada uma fachada para a fé, por outros, monumento que acolhe miseráveis em suas vísceras como um útero robusto, elástico, permanentemente disponível para conceber novas criaturas. Na Idade Média, as igrejas haviam sido consideradas praças públicas providas de teto e teria cabimento, ainda nos dias atuais, alcunhar aquela edificação de Alfred Jarry. A homenagem a Jarry, cujas ideias nem sempre afinaram com as do Papa, se justificava com propriedade no fato de que em nenhum outro lugar se aplicaria tanto a patafísica. Era notório que religião e patafísica compartilhassem de idêntica definição, ambas ciências dedicadas às soluções imaginárias, igualmente exercidas nos satélites nos arredores da Catedral, templos menores, fora do domínio papal, com frequentadores assíduos e entregues às mãos protestantes de Deus." (pp. 233-4)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Kátia Bandeira de Mello é escritora, poeta e artista visual, com formação em Direito Internacional Privado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade de Londres e a NYU School of Law. Natural do Rio de Janeiro, é radicada nos Estados Unidos desde 1998. É colunista e editora da Revista Philos e bolsista da New York Foundation for the Arts. Publicou os livros Forrageiras de Jade (2009), Forasteiros (2013), Baleias, bromélias e outras naturezas (Lisboa, 2022) e, pela Confraria do Vento, Jogos (ben)ditos e folias (mal)ditas (2016), Colisões bestiais (particula)res (2016) e Caderno de artista (2022).

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar A patafísica do quadrado de Kátia Bandeira de Mello

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