Isabor Quintiere - Rituália
Os contos de Isabor Quintiere apresentam um estilo próprio com base em influências da literatura fantástica, do realismo mágico e até mesmo da ficção científica, porém não se enquadrando em nenhuma dessas categorias. Talvez a referência mais próxima para entender o trabalho da autora seja a escola literária argentina do fantástico, consagrada por Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Julio Cortázar, Silvina Ocampo e, mais recentemente, Samanta Schweblin. De qualquer forma, além do estilo, o leitor encontrará em Rituália uma característica que une a obra de todos esses autores, a busca pela representação daquela coisa que existe dentro de nós e que não tem nome mas, como já dizia José Saramago, é o que verdadeiramente somos.
Uma característica marcante de Isabor Quintiere é a de construir mundos paralelos ao nosso cotidiano, regiões nas quais o leitor é envolvido em uma espécie de terror psicológico, sem saber exatamente o limite entre a realidade e a ilusão. Em "Os novos residentes" por exemplo, o protagonista cego mora sozinho em uma grande casa na qual conhece os mínimos detalhes por meio do toque de suas mãos, mas ruídos estranhos e pequenas alterações nos ambientes o fazem constatar que há algo muito errado com a sua residência segura até então. Já em "Atrás da porta", conto inical do livro, pai e filha convivem em harmonia até que os questionamentos da menina sobre a ausência da mãe, que vive isolada e incomunicável em um dos cômodos, perturbam a rotina.
"Ali está ela: Gilvânia, há duas décadas rainha absoluta da praça do Centro. Chega logo cedo, quando mesmo o sol ainda luta para despertar, e se instala em seu pequeno palco quadrado feito de cimento, com o corpo e as roupas tingidos de bronze. Tão logo o comércio dá indícios de abrir e o povo começa a se avolumar nas proximidades, ela já está a postos na pose do dia: ora representa uma senhorinha humilde, apoiada em sua bengala, ora senta-se e parece contemplativa, ora ousa mais e deixa os braços erguidos para o céu com um sorriso permanente no rosto. Independentemente da performance escolhida, os passantes se alegram ao vê-la e, como se cumprindo uma rotina, sempre tentam detectar todos os seus mínimos movimentos – em vão, pois Gilvânia se aperfeiçoou na arte de ser estátua. Dela não se vê escapar qualquer suspiro." (p. 107) - Trecho do conto Estátua!
No entanto, o leitor pode ser surpreendido por um delicioso conto como "Vagarosa", no qual é narrada a biografia de uma inusitada protagonista chamada Dorotéia, na verdade uma tartaruga que sobrevive a gerações de uma mesma família, alheia à extinção de sua própria espécie. Já no ótimo e bem-humorado "O verbo", o mundo está a um passo da catástrofe quando Volkof, um jovem comum da antiga União Soviética, que mal sabe manter os cadarços amarrados, precisa se decidir sobre o lançamento de mísseis balísticos intercontinentais em resposta a um suposto ataque nuclear durante a Guerra Fria: "Uma única palavra surge no quadro de horror que se desenha no painel, uma incontestável e dominante, a pior palavra da história linguística, a palavra-pária: LANÇAR."
"Josélia Segunda não tinha nada de precioso na vida além da memória do dia em que o mar brotou do chão rachado de sua terra. / Havia sido um ano terrível, onde o verde rapidamente cedeu seu lugar à secura e os únicos pássaros que se via sobrevoar aquela terra esquecida por Deus eram urubus. Não se ouvia o mugido das vacas ou os cascos das cabras, agora todas se desfazendo por intermédio dos vermes. Josélia Segunda, a mais velha dos cinco filhos de Sebastiana e José Bento, percebia os ossos de seus irmãos ficando cada dia mais nítidos sob a pele e chegava a temer que saltassem para fora, ficassem expostos à sujeira e ao vento. Ela não teria conhecimento médico suficiente para colocar os ossos de volta na pele se isso acontecesse, e então? O que seria do menorzinho, Agnaldo, por exemplo? Iria morrer com o esqueleto todo pra fora? Quando expôs esse temor ao pai, ele riu uma risada seca, respondeu que todo mudo morre com o esqueleto pra fora e passou o resto do dia calado, sem olhar para os filhos." (p. 125) - Trecho do conto O fazedor de dilúvios
Em "A serenata dos procariontes", encontramos um exercício de ficção científica fora dos padrões normais, no qual um "planeta de microcoisas" pode representar a esperança de um futuro para o universo: "Os nativos não serão capazes de se alegrar com os ritmos cósmicos que um dia, há milhares de anos, despertaram algo nos pés e nas palmas das mãos dos homens. Esses seres não poderão conceber a ideia de pés ou palmas das mãos, muito menos de homens; serão capazes apenas de manterem-se vivas, como máquinas orgânicas, mas é assim que tudo mais de engenhoso geralmente começa: mantendo-se vivo." Seja qual for o estilo, Isabor Quintiere sabe como manter o domínio narrativo e a atenção do leitor. Um livro recomendado e uma autora para se acompanhar nos próximos anos.
"Em uma data incalculável, porque já não existirá alguém para calculá-la, um objeto cortará a atmosfera de um exoplaneta não-classificado e cairá com um baque surdo em algo que aqui chamaríamos de praia, mas que ali não possuirá nome, como todas as demais coisas não possuirão. Naquela terra sem nomes e sem países, o objeto afundará na areia e passará alguns longos dias e algumas longas noites inteiramente só. Não será difícil; já estará bem acostumado à solidão. Ali, ao menos, ainda repousará na companhia do som das ondas. Ele terá passado os últimos milhares de anos envolto por silêncio, exceto pelas músicas que repetirá infinitamente para si mesmo e para quem, naquele grande mar negro, puder estar ouvindo." (p. 137) - Trecho do conto A serenata dos procariontes
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