António Lobo Antunes - Conhecimento do Inferno

Literatura portuguesa contemporânea
António Lobo Antunes - Conhecimento do Inferno - 248 páginas - Editora Objetiva, Selo Alfaguara - Lançamento 2006   (lançamento em Portugal 1980).

Para aqueles que buscam uma leitura leve e agradável, sem maiores desafios literários, não recomendo absolutamente nenhum dos romances do português António Lobo Antunes, tanto em relação à escolha dos temas quanto à técnica narrativa, já que é um autor que exige atenção redobrada do leitor. Este Conhecimento do Inferno, terceiro de uma trilogia iniciada com Memória de elefante e Os cus de Judas é especialmente difícil por tratar de dois temas espinhosos: a experiência do próprio Lobo Antunes durante a guerra colonial em Angola e o  período em que trabalhou como psiquiatra no hospital Miguel Bombarda em Lisboa nos anos setenta.

Toda a ação do romance ocorre durante uma viagem de carro com duração de um dia, do sul de Portugal, região do Algarve, até Lisboa, mas o truque de António Lobo Antunes é justamente multiplicar este tempo passando por várias fases da vida do narrador. Os eventos são lembrados pelo solitário protagonista (o próprio Lobo Antunes) misturando épocas e alternando entre a primeira e terceira pessoa. Nesta passagem, ao final do primeiro capítulo, ele deixa claro, em tom de autobiografia, o que podemos esperar do romance: "Em 1973, eu regressara da guerra e sabia de feridos, do latir de gemidos na picada, de explosões, de tiros, de minas, de ventres esquartejados pela explosão das armadilhas, sabia de prisioneiros e de bebês assassinados, sabia do sangue derramado e da saudade, mas fora-me poupado o conhecimento do inferno".

Em outro trecho, desta vez utilizando a terceira pessoa, fica clara a posição contrária aos métodos de psiquiatria utilizados: "O inferno, pensou, são os tratados de Psiquiatria, o inferno é a invenção da loucura pelos médicos, o inferno é esta estupidez de comprimidos, esta incapacidade de amar, esta ausência de esperança (...)" ou nesta outa passagem: "Nas reuniões do hospital, de dia, assaltava-o a impressão esquisita de que eram os doentes quem tratavam os psiquiatras com a delicadeza que a aprendizagem da dor lhes traz, que os doentes fingiam ser doentes para ajudar os psiquiatras (...)".

Lendo algumas partes do romance de Lobo Antunes, só encontro paralelos na literatura  sobre a descrição e ambientação da loucura em autores como Lima Barreto ou Dostoiévski. Uma experiência perturbadora que não consegue ser facilmente explicada ou resenhada: "Eis-me no reino das flores de plástico, verificou acariciando com o polegar as orgulhosas pétalas postiças, no meio dos sentimentos de plástico, das emoções de plástico, da piedade de plástico, do afeto de plástico dos médicos, porque nos médicos quase só o horror é genuíno, o horror e o pânico do sofrimento, da amargura, da morte. Quase só o horror sangra nos que se debruçam para a angústia alheia com os seus instrumentos complicados, os seus livros, os seus diagnósticos cabalísticos, como em pequeno eu me inclinava para os moluscos na praia, virando-os com um pauzinho para espiar, curioso, o outro lado".

Comentários

Alex Zigar disse…
Excelente leitura.Anotado.

Abraços, Kovacs.
nostodoslemos disse…
Kovacs,
Passei aqui, vi a dica, encomendei e só por este trecho, acertei no investimento:

"Nas reuniões do hospital, de dia, assaltava-o a impressão esquisita de que eram os doentes quem tratavam os psiquiatras com a delicadeza que a aprendizagem da dor lhes traz, que os doentes fingiam ser doentes para ajudar os psiquiatras (...)".

Obrigada, como sempre!
Alexandre Kovacs disse…
Alex, obrigado pela visita!
Alexandre Kovacs disse…
Lígia, um livro excelente mas que deixa marcas.
Chutando a Lata disse…
Gostei de sabê-lo.
jugioli disse…
Aproveito muito essas conexões que voce faz entre os autores.

Bjs

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