Flavio Cafiero - Dez centímetros acima do chão

Literatura brasileira
Flavio Cafiero - Dez centímetros acima do chão - 160 páginas - Editora Cosac Naify - Lançamento 2014.

Um dos vencedores do Prêmio Jabuti 2015, este livro reúne 14 contos escritos entre 2009 e 2013, todos inspirados no cotidiano da classe média em um ambiente urbano. O termo "escrita criativa" está um pouco desgastado na literatura contemporânea, mas define bem o esforço de Flavio Cafiero para não subestimar a inteligência do leitor na busca da surpresa, seja pela estrutura narrativa incomum ou pela originalidade dos temas. No entanto, é bom avisar que o cuidado na produção dos textos exige atenção redobrada, principalmente pelo que não é explicitado pelo autor, mas apenas sugerido nas ações dos personagens (assim como na vida real, precisamos avaliar e tomar decisões de acordo com a intuição e o conhecimento parcial dos fatos).

Até mesmo as notas de rodapé assumem uma função original, diferente em cada conto, servindo como mais um elemento de apoio para esclarecer ou complementar a trama. O próprio Cafiero explica a técnica nesta entrevista"geralmente os rodapés acrescentam informações que, de certa forma, são dispensáveis para a compreensão do texto. Quis que fosse o contrário, que o rodapé modificasse totalmente o sentido da história, acrescentando camadas até mesmo discordantes (...) São experiências, brincadeiras. Mas os rodapés são partes inseparáveis dos contos. Lê-los com displicência, como fazemos geralmente com as notas, é exatamente a armadilha. Quem cai na armadilha, perde o conto". Realmente, não podemos ser displiscentes ao ler os textos de Cafiero, cada detalhe é parte integrante desta sequência de pequenos detonadores que antecedem a explosão final de todo bom conto.

Em "O atirador de facas" o reencontro de dois antigos amigos, para a preparação de um jantar, encobre um deliberado plano de vingança. Aos poucos as intenções criminosas do narrador se tornam mais claras na medida em que ele deixa extravasar todo o seu ressentimento e frustração pela falta de coragem do antigo parceiro em assumir a relação homossexual, o leitor vai compartilhando os mecanismos de sua mente transtornada.  Aqui as notas de rodapé funcionam como um guia para o leitor, explicando a situação do presente em função de uma viagem que ambos fizeram juntos no passado, uma viagem que o parceiro se recusa a lembrar e aceitar e poderá pagar um preço caro por isso.
"Não acho seguro você me segurar pelos ombros enquanto tenho uma faca na mão. Então eu largo a faca, me viro e pergunto: você lembra do quadro, não lembra? E eu não espero você fingir que não lembra, eu disparo até o corredor e carrego o quadro para a cozinha, eu quero ver os seus olhos diante do quadro. Coloco você de frente pro quadro e aperto a moldura, torcendo, e apertei, apertei, e eu sei que você lembrou daquele quadro, daqueles dias, daquela noite. E o cozinheiro invisível diz: quadro bonito, onde é? Um silêncio. O chiado da panela de pressão, a frigideira no fogo, esperando as cebolas, esperando, esperando. Nada. Nem uma piscada. Nada. Não piscou. Nada, não é nada. Este quadro não é nada, eu digo. Eu acho que confundi. E mais silêncio. Você não está confortável. Eu vi a emoção na boca, pronta pra ser dita, o quadro no fundo dos seus olhos." - 'O atirador de facas' (págs. 25 e 26)
O estilo de Rubem Fonseca está presente no (muito) brutal "Cavo varo" uma descrição de um ato de necrofilia, novamente no campo homossexual, onde um médico se confronta consigo mesmo de uma forma esquizofrênica (o contraponto é feito pelas notas de rodapé), toda a cena descrita em um necrotério e alternando entre primeira e segunda pessoas, uma fórmula difícil de funcionar para manter a tensão do conto até o final, principalmente quando o narrador é a própria consciência do protagonista.
"Geladinho, o Gabriel, e sem os odores sulfurosos, diligentemente higienizado, alguém se esmerou no serviço, apenas esse eflúvio de álcool, agradável, soltando dos poros à medida que o velho investe, epiderme mansa, firme, imberbe, os pelos do velho patinando sem obstáculos, ô coisa boa, laterorrinia suave, de perto nem se nota, tem que recuar o pescoço pra perceber, lóbulo auricular bem colado ao rosto, gene recessivo, imagina só, imagina, um gene exclusivo pra determinar o jeitão da orelha. Quando a questão é lóbulo você prefere os dominantes, diga aí: mais fácil de morder." - 'Cavo varo' (págs. 69 e 70)
Em "Dez centímetros acima do chão", conto que empresta o título ao livro, mais um tema forte bem desenvolvido pelo autor com originalidade, um adolescente conversa com seu cão sobre os seus planos futuros e pelas pistas deixadas no texto deduzimos que os pais não conseguem se fazer presentes na vida do infeliz protagonista, fato que já provocou duas tentativas de suicídio anteriores. Um final de mestre, daqueles que conseguem pegar o leitor de surpresa (como é boa essa sensação).
"Você entende, amigo, o que estou dizendo? Todo mundo, agora, tem medo de mim. Eu vou dar bom dia à empregada e dizer que vou mais cedo pra escola porque preciso passar na biblioteca. Ela vai perguntar se quero almoçar antes, e vou dizer que não precisa, que só vou tomar um copo de leite, que vou comer um hambúrguer no trailer em frente à escola. Sei que ela vai querer chamar o pai no trabalho, vai interromper os versinhos que ele escreve enquanto finge digitar uns relatórios, e meus pés doem só de pensar. Nessa hora, antes de pisar na cozinha, vou me despedir da sala. As janelas fechadas (a mãe diz que entra muito pó), os quadros com moldura ressecada, todos tortos por causa da parede que está sempre trepidando (a mãe diz que não se fazem mais casas decentes), e as poltronas, e a mesa de centro cheia de bugigangas. A casa é tão apertada, você não acha? Eu cresci, ela foi apertando, meu coração não cabe (e isso é poesia). Acho que minha mãe comprou muita coisa para ocupar os espaços, pra tentar mudar o que, no fundo, sempre continuou igual, pelo menos pra mim, só que menor, mais apertado, você está entendendo?" - 'Dez centímetros acima do chão' (págs. 85 e 86)
Já em "Orcas", o autor passa a narrativa em primeira pessoa para uma mulher de forma muito convincente. A protagonista está prestes a descobrir como a rotina pode se transformar em uma coisa terrível em nosso cotidiano urbano, como os transtornos obsessivos vão chegando de mansinho e tomando conta de tudo com consequências inusitadas. Neste conto o experimentalismo fica um pouco de lado e o texto flui de uma forma muito bem-humorada. Não temos como não nos apaixonar por esta simpática personagem neurótica.
"Ajeitei o cabelo, estava com uma aparência estranha, mas não passei batom. De alguma forma estava decidido que nunca mais passaria batom dentro de um carro. Antes ou depois: dentro de um carro, nunca. Ajeitei mais uma vez o cabelo, tirei os anéis e peguei um tubo de hidratante no porta-luvas. Passei o creme nas mãos vigorosamente, conforme indicado, indo até os punhos, quase nos cotovelos. Outro hábito diário gritando na minha frente e me acusando de maníaca. Maníaca. Maníaca. Qual o sentido? Qual o sentido de passar hidratante dentro do carro todos os dias logo depois de estacionar na minha vaga? Por que não faço isso em casa? A cena ridícula de tirar os anéis pra que não fiquem aquelas sobrinhas de creme nas bordas e nas ranhuras. Em dias de calor os anéis não saem com facilidade, e massageio os dedos com o hidratante pra poder tirá-los. Entende a questão? Eu aplico hidratante pra justamente tirar os anéis e passar hidratante. E entupo os braços com o creme cheirando a salada de fruta. E nem sequer tenho problema de ressecamento das mãos." - "Orcas" (pág. 111)

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