Mo Yan - As Rãs
Mo Yan - As Rãs - Editora Companhia das Letras - 496 páginas -Tradução direta do chinês por Amilton Reis - Lançamento no Brasil: 23/09/2015.
A Academia Sueca definiu o estilo do chinês Mo Yan, prêmio Nobel de Literatura 2012, como "realismo alucinatório". A classificação pode soar extravagante à princípio mas, de fato, ao avançarmos no texto não há como evitar a comparação com o "realismo mágico" de Gabriel Garcia Márquez, uma interpretação que seria insuficiente e reducionista para o talento de Mo Yan, "alucinado" é um adjetivo que funciona bem melhor para caracterizá-lo. Adicionalmente, a fusão do antigo com o novo é marcante em "As Rãs", último romance do autor que até a divulgação do Nobel era muito pouco conhecido no Brasil. A citação de lendas do folclore em contraste com eventos contemporâneos da história da República Popular da China, principalmente os efeitos da política de planejamento familiar do Estado nas comunidades rurais, é o combustível literário deste romance, pano de fundo para contar a trajetória de Wan Coração ou simplesmente da "tia", como era chamada por todos na região, a primeira parteira da aldeia com ensino formal de obstetrícia que se tornou uma defensora intransigente do controle de natalidade, perseguindo os casais que tentavam burlar o sistema e passando a praticar abortos e vasectomias até mesmo em integrantes de sua própria família.
Hoje, sabemos que a política de planejamento familiar, "um casal, um filho", imposta pelo governo comunista no final da década de setenta foi realmente efetiva para controlar a explosão populacional na China — que ainda assim apresenta hoje uma população de aproximadamente 1,3 bilhões de pessoas — e, obviamente, promover o progresso econômico que presenciamos na atualidade. No entanto, as ações de controle, que contavam com a punição dos cidadãos que se recusassem a colaborar com as diretrizes do Estado, podendo perder os seus direitos políticos e empregos, foram muito criticadas no ocidente devido aos excessos denunciados, tais como os abortos forçados em gravidas de até sete meses e programas de esterilização em massa. As restrições ao controle de natalidade só foram abrandadas oficialmente na última reunião do Partido Comunista, em outubro de 2015, quando foi anunciado, após três décadas, que os casais chineses poderiam finalmente ter até dois filhos, o que não deixa de ser um progresso. O assunto é espinhoso e delicado para um país que ainda não pode ser considerado um exemplo de liberdade de expressão. O próprio Mo Yan foi criticado no ocidente por ter uma postura política pouco combativa e até mesmo submissa com o governo, o que me parece absolutamente inverídico depois de conhecer o conteúdo e as revelações deste romance, lançado originalmente em 2009.
O primeiro período histórico importante citado por Mo Yan é a época da Grande Fome, chamada pelo governo comunista de Mao Tsé-Tung como "Grande Salto Adiante" (1958 - 1962), uma tentativa de fazer com que a industrialização aumentasse no país por meio do trabalho coletivo e slogans da política revolucionária, a crise econômica foi ainda agravada devido ao período coincidente com vários desastres naturais o que ocasionou a morte de mais de trinta milhões de pessoas. Este é o ponto de partida da narrativa que descreve os personagens, ainda crianças, descobrindo em sua aldeia natal o prazer de comer carvão para aliviar a fome, um exemplo do tratamento "mágico" ou "alucinatório" da realidade manipulada pelo autor que, sem dispensar o lirismo na sua ficção, a começar pelos exóticos nomes dos personagens, denuncia os tempos difíceis através da visão do protagonista, Girino, um dramaturgo que escreve as suas memórias na forma de cartas a um professor de literatura japonês, lembranças da família e atividades da tia, primeiro parteira e depois aborteira, passando por várias fases da história chinesa.
A Academia Sueca definiu o estilo do chinês Mo Yan, prêmio Nobel de Literatura 2012, como "realismo alucinatório". A classificação pode soar extravagante à princípio mas, de fato, ao avançarmos no texto não há como evitar a comparação com o "realismo mágico" de Gabriel Garcia Márquez, uma interpretação que seria insuficiente e reducionista para o talento de Mo Yan, "alucinado" é um adjetivo que funciona bem melhor para caracterizá-lo. Adicionalmente, a fusão do antigo com o novo é marcante em "As Rãs", último romance do autor que até a divulgação do Nobel era muito pouco conhecido no Brasil. A citação de lendas do folclore em contraste com eventos contemporâneos da história da República Popular da China, principalmente os efeitos da política de planejamento familiar do Estado nas comunidades rurais, é o combustível literário deste romance, pano de fundo para contar a trajetória de Wan Coração ou simplesmente da "tia", como era chamada por todos na região, a primeira parteira da aldeia com ensino formal de obstetrícia que se tornou uma defensora intransigente do controle de natalidade, perseguindo os casais que tentavam burlar o sistema e passando a praticar abortos e vasectomias até mesmo em integrantes de sua própria família.
Hoje, sabemos que a política de planejamento familiar, "um casal, um filho", imposta pelo governo comunista no final da década de setenta foi realmente efetiva para controlar a explosão populacional na China — que ainda assim apresenta hoje uma população de aproximadamente 1,3 bilhões de pessoas — e, obviamente, promover o progresso econômico que presenciamos na atualidade. No entanto, as ações de controle, que contavam com a punição dos cidadãos que se recusassem a colaborar com as diretrizes do Estado, podendo perder os seus direitos políticos e empregos, foram muito criticadas no ocidente devido aos excessos denunciados, tais como os abortos forçados em gravidas de até sete meses e programas de esterilização em massa. As restrições ao controle de natalidade só foram abrandadas oficialmente na última reunião do Partido Comunista, em outubro de 2015, quando foi anunciado, após três décadas, que os casais chineses poderiam finalmente ter até dois filhos, o que não deixa de ser um progresso. O assunto é espinhoso e delicado para um país que ainda não pode ser considerado um exemplo de liberdade de expressão. O próprio Mo Yan foi criticado no ocidente por ter uma postura política pouco combativa e até mesmo submissa com o governo, o que me parece absolutamente inverídico depois de conhecer o conteúdo e as revelações deste romance, lançado originalmente em 2009.
O primeiro período histórico importante citado por Mo Yan é a época da Grande Fome, chamada pelo governo comunista de Mao Tsé-Tung como "Grande Salto Adiante" (1958 - 1962), uma tentativa de fazer com que a industrialização aumentasse no país por meio do trabalho coletivo e slogans da política revolucionária, a crise econômica foi ainda agravada devido ao período coincidente com vários desastres naturais o que ocasionou a morte de mais de trinta milhões de pessoas. Este é o ponto de partida da narrativa que descreve os personagens, ainda crianças, descobrindo em sua aldeia natal o prazer de comer carvão para aliviar a fome, um exemplo do tratamento "mágico" ou "alucinatório" da realidade manipulada pelo autor que, sem dispensar o lirismo na sua ficção, a começar pelos exóticos nomes dos personagens, denuncia os tempos difíceis através da visão do protagonista, Girino, um dramaturgo que escreve as suas memórias na forma de cartas a um professor de literatura japonês, lembranças da família e atividades da tia, primeiro parteira e depois aborteira, passando por várias fases da história chinesa.
"Professor, tínhamos em nossa aldeia um costume bem antigo de batizar as crianças com o nome de partes do corpo humano, como Chen Nariz, Zhao Olho, Wu Intestino, Sun Ombro... Nunca procurei saber a origem dessa prática, talvez tenha surgido por acreditarem que um nome humilde daria vida longa, ou pelo fato de as mães considerarem o filho parte da própria carne. Esse é um costume que caiu em desuso. Os pais de hoje não querem mais dar nomes estranhos aos filhos. As crianças da aldeia agora recebem nomes sofisticados de personagens de novelas de Hong Kong, Taiwan, Japão ou Coreia. Quem tinha o nome à maneira antiga, na maioria dos casos, acabou optando por outro mais elegante. Naturalmente, há aqueles que mantiveram o original, como Chen Orelha e Chen Sobrancelha. (...) Chen Nariz — pai de Chen Orelha e Chen Sobrancelha - foi meu colega na escola primária e meu amigo na juventude. Entramos na escola primária de Dayanglan no outono de 1960. As memórias mais marcantes que tenho daquela época de fome, são, em grande parte, relacionadas à comida. Por exemplo, a história de quando comi carvão. Muitos pensam que é invenção minha, mas juro por minha tia que tudo aquilo aconteceu de fato, não inventei nada." (págs. 11 e 12)Outro marco importante, revisitado no romance, é a violenta Revolução Cultural (1966 - 1976) com suas terríveis assembleias de denúncias, organizadas pelos comitês revolucionários. Um processo que, na verdade, tinha muito pouco de revolucionário e menos ainda de cultural. O nosso protagonista, ainda criança, testemunha um desses eventos onde antigas brigas entre vizinhos e até mesmo antipatias pessoais originavam acusações políticas com consequências terríveis para os "réus". Esta fase termina apenas com a morte de Mao Tsé-Tung em 1976 e a transferência do poder para Deng Xiaoping, Secretário Geral do Partido que deu início à arrancada da China como a potência econômica que conhecemos nos dias de hoje. A tia é injustamente acusada de espiã do Partido Nacionalista devido a um namoro que manteve com um piloto da força aérea que desertou e sofre por isso uma série de humilhações públicas.
"O local da assembleia já estava tomado de gente. Sobre a barragem, um tablado imponente fora montado com tábuas e esteiras. Naqueles anos, a comuna contava com uma equipe especializada em montar tablados ou quadros de avisos, tinham técnica apurada e uma habilidade extraordinária. O tablado era decorado com dezenas de bandeiras vermelhas e uma faixa vermelha com letras brancas. Nos dois postes nos cantos do tablado estavam pendurados quatro enormes alto-falantes que tocavam a 'Canção das citações' no momento em que chegamos: 'A teoria marxista, em sua infinidade de ideias, se resume em uma única frase: é justo rebelar-se! É justo rebelar-se!' (...) Animação, havia muita animação mesmo. Eu lutava para avançar em meio à multidão, queria forçar a passagem para conseguir chegar bem perto do tablado. As pessoas com quem eu topava me chutavam, socavam, me enfiavam o cotovelo sem a menor cerimônia. Depois de muito esforço, tinha a roupa encharcada de suor e o corpo cheio de hematomas, mas em vez de chegar aonde queria, fui expelido da multidão. Ouvi o gelo estalar — pacá-pacá — e aquilo me causou um mau pressentimento. Nesse momento, um homem com voz de pato começou a berrar nos alto-falantes: 'A assembleia de denúncias está prestes a começar... Peço aos camponeses de renda baixa ou médio-baixa que se acalmem... Sentem-se os que estão nas fileiras da frente... Sentem-se'" (págs. 107 e 108)Após a fase crítica da Revolução Cultural, mesmo tendo sido acusada e presa, a tia Wan Coração consegue voltar ao Partido e assumir a posição de líder do movimento de planejamento familiar, dando início às suas atividades que consistiam em realizar mais abortos do que partos, além de operações de vasectomia, sempre sob orientação do governo. É claro que a população chinesa, que tinha em sua tradição a importância da continuidade do nome da família e o desejo de muitos filhos (principalmente homens) não atende de forma passiva às determinações do Partido fazendo com que métodos violentos tivessem que ser aplicados pela tia no cumprimento do que ela considerava ser o seu dever com o Estado. Ela desempenha as suas funções de forma obsessiva e sem qualquer crise moral, talvez em uma associação do autor com as ações inflexíveis do governo, como podemos constatar no trecho abaixo que descreve a perseguição à mulher de Girino, sobrinho de Wan Coração:
"A van da força-tarefa estacionou na frente da casa do meu sogro. Praticamente qualquer um capaz de andar veio ver o que estava acontecendo. Nem a paralisia deteve Xiao Lábio Superior, que apareceu lá, de cara torta, apoiado numa bengala. Do alto-falante, saía uma voz cheia de entusiasmo e energia: 'O planejamento familiar é uma grande prioridade, que diz respeito ao futuro do país e da nação... Para construir um país forte com as quatro modernizações, devemos fazer todo o possível para controlar o crescimento da população e melhorar sua qualidade... Quem engravidar de forma ilegal não deve confiar na sorte e tentar se safar... Nada escapa aos olhos das massas populares, mesmo que se esconda num buraco ou na mata fechada, não será capaz de escapar... Quem emboscar ou agredir um funcionário do planejamento familiar será punido como contrarrevolucionário em flagrante... Quem de alguma maneira sabotar os trabalhos de planejamento familiar, será rigorosamente punido conforme a disciplina do Partido ou a legislação nacional... (...) Houve um longo silêncio dentro do portão, depois se escutou o cantar estridente de um galo jovem. Em seguida foi minha sogra que abriu o berreiro enquanto rogava pragas: 'Wan Coração, sua peste, coisa-ruim, demônio sem alma... Você não há de ter uma boa morte... Depois de morrer, vai escalar uma montanha de lâminas cortantes, vão jogar você num caldeirão de óleo fervente, vão arrancar sua pele e cavar seus olhos, vai queimar inteira numa Lanterna Celestial...' (...) Minha tia sorriu com desdém e falou para o vice-diretor: 'Podem começar!'" (págs. 192 e 193)Na parte final do romance, em nossa época atual de celulares e desenvolvimento econômico da China, a população — principalmente os mais ricos — contorna corriqueiramente a política de controle de natalidade com o pagamento de multas e até mesmo o uso de "barrigas de aluguel" para conseguir ter mais filhos "ilegais". Nesta parte, Mo Yan faz justiça à definição da Academia Sueca, finalizando o livro com uma peça de teatro chamada de "As Rãs" que é um autêntico "realismo alucinatório". Enfim, uma obra muito recomendada porque ao restringir o foco da narrativa em um grupo de familiares e amigos que atravessam sucessivas gerações, atinge o status de universalidade e pode ser chamada de obra-prima, seja no oriente ou ocidente.
"'Na verdade, não há por que ter medo de anfíbios, eles têm o mesmo ancestral do homem', ela disse. 'O girino tem a mesma forma do espermatozoide e o óvulo humano também não difere muito de um ovo de rã. Além disso, já viu um feto com menos de três meses? Tem uma cauda comprida, igualzinho aos anfíbios na fase da metamorfose.' (...) Ela parecia recitar de cor: 'Por que a palavra 'wa' pode significar tanto 'rã' como 'bebê'? Por que o choro de um bebê que saiu do ventre da mãe é parecido com o coaxo de uma rã? Por que os bonecos de barro da nossa terra muitas vezes têm uma rã no colo? E por que a deusa criadora da humanidade se chama Nü Wa? Tudo isso indica que o ancestral dos seres humanos foi uma grande rã, o homem evoluiu da rã. É totalmente errada a teoria de que o homem veio do macaco...'" (págs 329 e 330)
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