Luiz Antonio de Assis Brasil - Escrever Ficção: um manual de criação literária

Literatura brasileira contemporânea
Luiz Antonio de Assis Brasil - Escrever Ficção: um manual de criação literária - Editora Companhia das Letras - 400 Páginas - Colaboração de Luís Roberto Amabile - Capa e projeto gráfico: Elisa von Randow, imagem da capa de Saul Steinberg, 1948 - Lançamento: 21/03/2019 (Leia aqui um trecho em pdf disponibilizado pela Editora).

O livro resume a experiência acumulada de Luiz Antonio de Assis Brasil em 34 anos de trabalho à frente da Oficina de Criação Literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), por onde já passaram alguns escritores de destaque na literatura contemporânea brasileira, tais como: Amilcar Bettega, Carol Bensimon, Cíntia Moscovich, Clarah Averbuck, Daniel Galera, Daniel Pellizzari, Luísa Geisler, Michel Laub e Paulo Scott, para citar somente os mais conhecidos.

O nebuloso conceito de talento como um dom divino, inerente ao indivíduo e que, portanto, não pode ser construído ou desenvolvido, por meio de trabalho e dedicação, é prontamente descartado pelo autor no primeiro capítulo: "No campo literário, nunca vi palavra tão vazia" (p. 20), preferindo apostar nas expressões "competência especial", citando Haruki Murakami (p. 21) ou "vocação" que "leva o escritor a aperfeiçoar o seu ofício", segundo Alejo Carpentier (p. 22). E assim, logo de início, fica claro o método que será aplicado ao longo de todo o livro, os conceitos e ferramentas sempre exemplificados por meio de trechos de obras literárias clássicas ou contemporâneas, ou seja, o manual de escrita acaba se transformando em um manual de boa leitura e reflexão crítica porque, como bem sabemos, não existem fórmulas prontas.

O primeiro tópico a ser abordado em profundidade é a importância da construção de um personagem verossímil ou consistente, fundamentado no que o autor chama de "questão  essencial", criada pelo ficcionista para que o personagem possa reagir/interagir com os fatores externos demonstrados na história, provocando o conflito, elemento básico de toda narrativa. Explicando melhor, nas palavras do próprio Luiz Antonio: "se o personagem central é apresentado como um ser feliz, sem traumas, sem inquietações, sem angústias – enfim, um extraterrestre –, e de imediato, quando surge o inesperado, ele passa a viver um conflito, quem vai acreditar nisso? Já se sabe: ninguém." (p. 96).
"O personagem consistente dá verdade à história - Para explicar melhor, usei uma imagem: a dos manequins das lojas, levados da vitrine para o depósito, para então voltar à vitrine e depois novamente ao depósito. O personagem não pode ser um boneco que transportamos de um capítulo a outro para viver as peripécias da nossa história. Por mais que levemos o manequim daqui para ali, fazendo com que percorra a cidade de carro, sentando-o num banco de praça ou na cadeira de um bar ou ainda visitando o zoológico, ele nunca perderá aquela cara de paisagem. [...] Seguindo nossa linha de raciocínio, ele deve ser o contrário de um manequim. Ou seja, ele precisa se assemelhar a nós. Ainda que, de tempos em tempos, segundo as modas teóricas, afirme-se o contrário, o personagem deve estar o mais próximo possível de um ser humano. [...] Sim, um ser humano: não há nada que conheçamos mais, nada que conheçamos menos." - Capítulo 2 - O personagem, o poderoso da história: O personagem como irradiador da narrativa (p. 39)
Conflito e focalização da narrativa, enredo e estrutura, tempo e espaço, serão muitos os conceitos e ferramentas apresentadas neste manual, sempre de forma simples, objetiva e segura, aquele tipo de segurança que somente o professor que domina a matéria consegue transmitir ao aluno. Na verdade, o tom é mais o de um "ficcionista falando para outros ficcionistas" (p. 11).  É claro que ninguém aprenderá a escrever lendo um manual, por melhor que seja, e também que Honoré de Balzac, Marcel Proust, Eça de Queirós e Machado de Assis, todos citados no livro, não frequentaram nenhuma oficina de escrita literária, mas isso não quer dizer que você não possa aprender ferramentas e seguir alguns conselhos para desenvolver a sua própria técnica. Entre eles, um dos mais difíceis de assimilar: o planejamento da obra.
"Planejar, sim, mas para ser livre – É possível que você ache o planejamento uma perda de tempo. Minha experiência, contudo, comprova: quem planeja acaba por escrever com mais rapidez, mas não só – escreverá melhor e com mais liberdade, porque o enredo estará imunizado contra os 'furos' decorrentes dos eventos mal costurados. Você já imaginou o engenheiro começar uma obra sem um projeto? Ou o diretor de cinema começar a filmar sem um roteiro? [...] se a narrativa estiver bem executada – resultado do planejamento –, mais natural parecerá. Artificial será a narrativa que segue sem rumo. Para consertar esse estrago, você tem de fazer emendas sobre emendas, que se tornam, ao final, visíveis – como os vincos nas roupas tiradas da mala. Se isso acontecer, será necessário reescrever tudo, o que pode se tornar bastante indigesto e, em casos mais graves, levar ao abandono do livro e, até da literatura. 'Mas eu posso reescrever apenas partes do livro, aquilo que estiver ruim.' Equívoco. Reescrever 'partes' da história é fazer um pacto com o demônio." - Capítulo 4 - Escrever ficção é tramar: O enredo e a estrutura (pp. 169 e 170)
O espaço é muitas vezes um fator menosprezado por escritores, entendendo-se como espaço não apenas "aquilo que entendemos como tal – um bar, uma barbearia, uma sala de cinema, um campo aberto, as nuvens, uma quadra de tênis –, mas também seres que se impõem ao nosso conhecimento, como um vaso de flores, uma caneta, um cão e até uma pessoa, desde que se integrem às percepções gerais – visuais, auditivas, táteis, gustativas, olfativas" (p. 259) ou, ainda segundo a epígrafe deste mesmo capítulo (uma citação de Gaston Bachelard): "Não se encontra o espaço, é sempre necessário construí-lo" (p. 256).
"Você usa todos os sentidos em sua ficção? – Os sentidos clássicos, os que aprendemos na escola, são cinco: visão, audição, tato, paladar e olfato. Os fisiologistas de hoje, porém, propõem acrescentar outros, como a dor, a fome, a temperatura corporal, a sensação de plenitude depos de comer, a premência de evacuar o intestino e a bexiga, o sentido de equilíbrio, a coceira. São sensações corpóreas 'internas' e, por isso, entram como clandestinos neste capítulo; mas vamos admiti-los, pois interessam a nós como ficcionistas. [...] O assunto começa com uma pergunta: por que, se sentimos tudo isso em nosso corpo, não o colocamos em nossa ficção? Já pensei muito nesse tema, e minha tentativa mais consistente de responder passa pela tradição literária, que teima em privilegiar apenas dois sentidos: a visão e a audição, considerando os demais indignos de habitar a literatura." - Capítulo 6 - Onde aconteceu isso tudo?: O espaço (p. 274)
Muitas desmistificações são promovidas por Luiz Antonio no decorrer do livro. Por exemplo, a questão do personagem que ganha uma existência própria, independente da vontade do escritor, uma lenda que Toni Morrison ajuda a destruir na seguinte citação retirada de uma entrevista da autora à Paris Review: "Eles (os personagens) nada têm em mente a não ser a si próprios e só se interessam por si mesmos. Então não é possível deixar que escrevam o livro para mim" (p. 56). Outro mito tradicional é a fixação de muitos autores em obter um "estilo próprio", muito bem apresentado no trecho abaixo.
"Você não precisa cultivar o fetiche do 'estilo próprio' – É bem verdade que, ainda hoje, encontramos alguma resenha que lá vem com a frasezinha: "A escritora fulana, dotada de estilo próprio...". Querem elogiar, mas o caminho do elogio passa distante disso. Dizer, entretanto, que "fulana tem um estilo marcado pela objetividade e materialidade da frase", ou "fulano tem um estilo fortemente conotativo", isso sim faz sentido, pois entra numa questão substantiva – além de esclarecedora para o provável leitor. [...] Por todas essas razões, não se atormente. Buscar seu 'estilo próprio' é um pseudoproblema. O leitor não está nem um pouco preocupado com isso. Se você é uma pessoa que lê muito e escreve muito, seu estilo pessoal acontecerá, sem que você precise forçá-lo. Aliás, é impossível forçar algo assim. Mais ainda: esteja atento para o fato de que, por mais que você invente, pratica o mesmo estilo uma legião de ficcionistas. Portanto, é bom estar atento a essas seduções baratas, que não vão melhorar a qualidade do seu texto." - Capítulo 8 - Pequeno tratado da liberdade: O estilo (pp. 333 e 334)
Um livro essencial para escritores, editores, resenhistas e outros profissionais ligados à área de criação e crítica literária, mas que agradará também ao público leitor em geral porque o texto é sempre bem-humorado e as citações de trechos das obras, assim como as respectivas análises, fazem da leitura um prazer do início ao final. Na minha opinião, o melhor conselho para quem pensa em se dedicar à carreira de ficcionista, Luiz Antonio de Assis Brasil revela logo no primeiro parágrafo da introdução: "Uma coisa, porém é certa: ele (o livro) jamais substituirá a leitura constante de obras literárias, a principal fonte para a formação de um escritor." (p. 11).

Comentários

Adriane Garcia disse…
Ah, tenho que ler este. Muito obrigada por resenhar e recomendar por aqui. Abraço.

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