Natércia Pontes - Os tais caquinhos

Literatura brasileira contemporânea
Natércia Pontes - Os tais caquinhos - Editora Companhia das Letras - 215 Páginas - Capa: Ale Kalko​ - Imagem de capa: Falconeira, de Julia Debasse, 2013, acrílica sobre linho, 140 x 78 cm. Reprodução de Rafael Salim - Lançamento: 2021.

Certamente você já conheceu ou, até mesmo, conviveu com um acumulador compulsivo, uma pessoa que não consegue se desfazer de coisas supostamente inúteis, tais como embalagens de presentes, caixas de papelão, jornais, revistas, agendas e calendários velhos, copos de geleia ou requeijão usados e toda sorte de objetos que, aos poucos, passam a dominar os ambientes da casa. Lúcio, um dos personagens do recém-lançado romance de Natércia Pontes, sofre deste tipo de distúrbio psíquico, mais conhecido como transtorno do colecionamento. 

Lúcio convive com as duas filhas jovens, Abigail e Berta, em um apartamento próximo à praia em Fortaleza que se transformou em uma espécie de aterro sanitário, onde todos dividem o espaço com as quinquilharias e os insetos. O romance tem como base uma narrativa forte conduzida em primeira pessoa por Abigail a partir de fragmentos de seu diário; ao escrever ela tenta encontrar algum sentido nos caquinhos formados por paixões, desilusões ou ausências – principalmente a da mãe – essas ausências afetivas e a desordem no seu cotidiano familiar não se encaixam no modelo de vida de uma adolescente de classe média quando comparado com as colegas de escola.

O caos doméstico é tão intenso que chega ao ponto de faltar comida na geladeira, não por uma questão financeira e sim por absoluta falta de senso prático de Lúcio, o que força Abigail e Berta a encontrarem formas alternativas de sobrevivência como bater na porta das vizinhas para pedir ovos ou que Berta passe cada vez mais tempo morando em temporadas na casa de uma amiga. Apesar das dificuldades de convivência e algumas brigas entre as irmãs – "ardia uma dinamite improvisada à base de fúria, hormônios, umidade, calor, desamparo logístico [...]" – , existe carinho na relação entre o pai e as duas filhas: "havia uma ligação forte que nos unia, um sentimento bruto de família, uma cumplicidade gelatinosa que nos protegia como uma placenta". Essa relação de amor e ódio entre eles é muito bem construída pela autora ao longo do romance, sobretudo ao utilizar uma personagem-narradora que é pouco confiável devido às crises típicas do amadurecimento.

"Meu apartamento não era ventilado e limpo como o de Neca. Nem asséptico e com cheiro de lavanda como a cabine do banheiro do colégio. Naquele lar as baratas não sofriam acuadas. Mesmo que, num mau dia, uma ou outra fosse esmagada pela ira existencial dos inquilinos (minha família), podia-se muito bem considerar nossa casa um local seguro para esses dóceis insetos de patinhas serrilhadas. Os insetos adoravam dormitar nas xícaras, explorar os recônditos dos nossos tênis, mergulhar no resto de água do garrafão, palmilhar nossas escovas de dentes. Havia um cheiro doce de barata que incensava nossa vida. Havia um consenso íntimo também. Eu fazia vista grossa à infestação de insetos e, em troca, esperava que houvesse o mínimo de respeito da parte deles. O de não subir em meu rosto enquanto eu dormia, por exemplo. Na maior parte do tempo as baratas cumpriam nosso acordo tácito e permitiam que a vida fosse mais suportável. Muitas vezes eu esquecia delas e dormia enrolada no lençol fino e cheirando a sebo. Mas cedo ou tarde encontrava uma patinha solta na gaveta de talheres ensebados da cozinha, e a vida voltava a ser indecifrável, como o nosso apartamento escuro, onde a luz não batia na sala. Até porque não havia sala. Havia um depósito de caixas de papelão entulhadas de livros que esfarelavam com o tempo. Algumas das caixas tiveram que ocupar a varanda por falta de espaço. Então chovia, e as caixas ficavam encharcadas e depois secavam com o vento e o sol. Passados uns anos, elas viraram um monturo de mofo e de ninho de cupim. A ideia de abrir a porta de vidro com esquadrias enferrujadas era tão apavorante que decidimos não a abrir nunca mais." (pp. 10-11)

O apartamento 402, onde convive esta família completamente disfuncional, é uma presença tão forte no romance que – com sua geografia caótica que inclui estalactites de vazamentos do teto mofado e cheiros peculiares como o vapor frio e sulfuroso da geladeira com alimentos estragados – pode ser considerado como mais um personagem na trama. Neste ambiente doentio e claustrofóbico todos precisam vencer as suas próprias dificuldades e seguir com a vida. As descrições sensoriais do livro podem chocar leitores mais suscetíveis como, por exemplo, quando a autora lança mão de um "cheiro doce de barata", mas há um contexto justificável. 

A narrativa é normalmente pontuada por um tom bem-humorado, típico da adolescência, como no trecho em que Abigail descreve que gostaria de ser uma "adolescente limpa, bem-cuidada, respeitada, digna de receber edredons macios, abajures de luz tênue, cômodas higienizadas, e, claro, com todas as gavetas funcionando perfeitamente, roupas bonitas, cortinas diáfanas, tapetes felpudos, cortiça em formato de coração pregada na parede e abarrotada de fotos de festas de aniversário memoráveis [...]", mesmo que essa postura esteja em alguns momentos bem mais próxima do tragicômico, como fica claro no decorrer do romance.

"O Aramis tinha escoliose. E nojo de menstruação. Mas essa última peculiaridade só fui descobrir meses depois da festa do Morta. A escoliose descobri naquele mesmo dia, sentada sobre a mureta (ele me deu pezinho para que eu pudesse subi-la e depois se alojou por entre minhas pernas). Ali mesmo o Aramis me pediu em namoro, antes de me beijar, durante a festa de aniversário do Morta, onde os convivas balançavam a cabeça diante de um som mecânico que vomitava Brujeria e estourava as caixas de som e os ouvidos de quem ia à mesinha de plástico arranjada no salão de festas se servir de 51, Sprite ou loló. Enquanto Aramis deitava docemente as mãos sobre a minha calça jeans, ele ensaiou uma expressão séria, antes de me avisar que já tinha uma namorada; contudo, havia um pequeno detalhe a ser esclarecido: só ela não sabia que estava namorando ele. Minhas sinapses demoraram alguns segundos para entender que aquele era o pedido oficial de namoro mais fofo da história. Nos beijamos e eu fiz carinho em suas costas curvas. Seu beijo era morno e perfumado; o cheiro de amaciante impregnado em sua camisa preta do Napalm Death me aconchegou. Àquela altura, era o dia mais feliz da minha vida. Uma semana depois já estávamos praticamente casados no que diz respeito a tempo de convivência (24 horas por dia, sete dias por semana, já que desde o primeiro dia dormíamos juntos, almoçávamos juntos, tomávamos banho juntos e até fazíamos cocô juntos) e de brigas (chinelas eram lançadas em ambas as direções com fúria e ciúme, sonetos de declaração de amor eterno ou de pedidos de desculpas serpenteavam as últimas páginas dos nossos cadernos escolares, traçados com garranchos trêmulos de caneta BIC). [...]" (p.p. 44-45)

Utilizando uma técnica eficiente que alterna fluxos de consciência e fragmentos narrativos do diário da personagem, Natércia Pontes nos apresenta um romance de formação diferente e sensível ao escrever sobre um tema sempre importante na literatura: as dores do amadurecimento e as dificuldades das relações humanas, em especial as familiares.

Sobre a autora: Natércia Pontes nasceu em 1980, em Fortaleza, e mora em São Paulo. É autora de Copacabana dreams (Cosac Naify, 2012), finalista do prêmio Jabuti.

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