Paulo Roberto Farias - Um rio corre dentro do meu sonho
No mais recente lançamento de Paulo Roberto Farias, após o romance Deixa eu te falar da noite, o autor nos brinda com uma coletânea de crônicas singulares, nas quais sua vivência como ator e escritor, bem como a história de sua família, ocupam o centro da narrativa. Trata-se de um livro que reflete sobre a impossibilidade da plena expressão pela escrita e, ao mesmo tempo, celebra o poder da memória — elemento essencial tanto para a literatura quanto para o teatro. Como o próprio autor ressalta: "o teatro é a arte da memória, memória dos atores que precisam lembrar das suas falas, das suas marcações no espaço, memória de todos os artistas envolvidos, de quem opera a luz e o som, memória dos nossos corpos reunidos. Mas memória também de quem assiste, o que resta depois de uma apresentação é aquilo que lembramos."
De fato, a inviabilidade da palavra não pode ser motivo de desistência para o escritor, é preciso continuar, falhar melhor, citando Samuel Beckett (1906-1989) na conclusão de O inominável, para permanecermos no campo da dramaturgia: "é preciso continuar, não posso continuar, é preciso continuar, então vou continuar, é preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar."
"[...] Aquilo que eu queria escrever é diferente disso que estou escrevendo agora, quase sempre me traio ao escrever. Escrever é também traduzir, e por vezes não sou um bom tradutor de mim mesmo. Tanta coisa que eu queria dizer e não consigo, tanta coisa que eu queria organizar naquilo que eu sinto. Escrever nem que seja para dizer que não consigo escrever, escrever nem que seja para expressar que não tenho condições de expressar. Escrever, apesar da insuficiência da palavra. Fazer uma literatura da insuficiência, não ser bom o suficiente mas ainda assim escrever. Escrever no escuro. Sem nenhum guia, escrever. Nunca saber ao certo aonde o texto vai levar. Escrever para descobrir aquilo que se vai escrever. Mas também escrever para errar, para jogar fora. Escrever para permitir o erro, errar muitas vezes, e quase sempre. Fazer fiasco. Errar pouco não basta. Eu tenho sempre a certeza de não ser capaz de escrever. O texto que eu desejo está sempre muito acima de mim e tentar alcançá-lo exige um empenho que por vezes me deixa esgotado. Um texto é sempre inalcançável, fugidio, impossível. [...]" (p. 19)
O autor destaca a importância da linhagem de mulheres fortes em sua genealogia, com ênfase especial na figura da avó, que se casou contrariando a vontade do pai e entrou sozinha na igreja — um gesto incomum e corajoso para a época. Em uma das crônicas, a inserção de um antigo texto que ressalta o papel feminino na continuidade da família: "[...] No passado era sinal de desgraça ter apenas mulheres em casa, era a morte do nome. Que importava o nome? O nome tinha sido uma convenção dos homens que por invejarem as mulheres inventaram um sinal imaginário para competir com a marca do sangue que as mulheres imprimem em seus descendentes. Que venham os homens e seus nomes efêmeros, as mulheres continuarão deixando suas marcas indeléveis."
"[...] Faz algum tempo que toda vez antes de entrar em cena, eu sempre penso nessas quatro possibilidades: Essa pode ser a primeira experiência teatral da vida de alguém na plateia, se for, que seja inesquecível. Essa pode ser a última experiência teatral da vida de alguém na plateia, e isso não tem nada de fúnebre, se for a última, que seja linda! Essa pode ser a última vez que eu entro em cena, se eu morrer amanhã, hoje eu quero estar inteiro. Esse pode ser o espetáculo mais lindo que alguém dessa plateia já assistiu, e essa pessoa vai lembrar disso para sempre. O fato é que provavelmente eu jamais ficarei sabendo se algumas dessas possibilidades se concretizaram, mas o que importa é que eu esteja em cena como se fosse a primeira vez de alguém na plateia, que eu esteja em cena como se fosse a última vez de alguém, que eu esteja em cena cena como se fosse a minha última vez, que eu esteja em cena como se este fosse o espetáculo mais lindo da vida de alguém." (p. 95)
Ao publicar um livro de crônicas que é também um livro de memórias, Paulo Roberto Farias expõe suas lembranças pessoais, sonhos com o rio Taquari, reflexões sobre a linguagem, seu trabalho como ator, além de prestar uma sensível homenagem às mulheres de sua família. Com isso, prova que, quanto mais íntimo e verdadeiro é o texto, mais universal se torna a obra literária — mesmo sabendo que, às vezes, as palavras são insuficientes. Um livro muito recomendado que soube sobreviver ao tempo, apesar de ter nascido da inaptidão e da desistência, como destacado na citação final. Contudo, como nos lembra Beckett: é preciso continuar, falhar melhor.
"Em 2012, um ano antes do aniversário de oitenta anos da minha vó, decidi que deveria escrever um livro como presente [...] Não consegui acabar antes do aniversário, mas ainda assim imprimi e entreguei a ela as páginas encadernadas, a foto do casamento deles na capa. Sei que a vó já não conseguia ler direito, imagino que nem tenha terminado de ler a parte que entreguei, mas isso já não importava. Avancei um pouco mais na narrativa, cheguei até o nascimento do primeiro filho e depois mais uma vez abandonei. Dessa vez, porém, senti uma espécie de consolo por ter visto a vó pegando a minha escrita com as mãos, a escrita tinha se tornado palpável, concreta. Ainda antes da morte da vó, eu já tinha desistido de seguir escrevendo, eu sabia que tinha perdido a luta contra a morte. Há alguns anos, comecei a escrever textos curtos como legendas das fotos dos meus avós que postava nas redes sociais, passei também a anotar nos meus diários sem nenhuma pretensão os sonhos que tinha com eles, os sonhos exigiam a escrita. Revejo agora este livro e me surpreendo que os textos tenham se formado quase sozinhos, sem o peso da obrigação da escrita, quase sem esforço e como se já não dependessem da minha vontade. No arquivo da versão que entreguei para minha vó, o livro ainda sem título tinha sido nomeado temporariamente assim: Sobre meus avós. Percebo só agora que o texto virou outra coisa: não é um livro sobre meus avós, é um livro sobre as memórias que tenho deles, é um livro sobre o meu amor. Essa escrita nasceu da minha inaptidão, da minha desistência, da impossibilidade da escrita, um livro que se fez apesar de mim." (pp. 104-5)
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