Anna Akhmátova - alma feminina, alma russa.
A poesia de Anna Akhmátova (1889-1966) é baseada em imagens aparentemente simples, sem ornamentos e representando um ponto de vista essencialmente feminino, coisa rara no início do século XX. Assume um caráter fortemente patriótico, apesar de ter sido na maior parte do tempo perseguida e censurada pelo governo comunista. Em 1925, uma resolução do comitê central do partido proibiu-a de publicar suas obras e só foi admitida pelo regime, como fonte de propaganda nacionalista, durante a segunda guerra mundial. Segundo Óssip Mandelshtám, um dos grandes poetas do século XX, a poesia de Anna parece descender não da linhagem poética russa, mas sim da tradição do romance psicológico de Turgueniev e Tolstoi.
Toda a obra de Anna Akhmátova é essencialmente autobiográfica e histórica, um depoimento sobre a revolução comunista e do período de perseguição política stalinista. As autoridades russas fuzilaram seu primeiro marido e prenderam o segundo em um campo de concentração, onde ele morreu, mas talvez o maior sofrimento de Anna Akhmátova tenha sido durante o longo período em que seu filho esteve preso.
Noite - Viétcher
(publicado em 1912)
Ele gostava de três coisas neste mundo:
o coro das vésperas, pavões brancos
e mapas da América já bem gastos.
Não gostava de crianças chorando,
nem de chá com geléia de framboesa
e nem de mulheres histéricas
...e eu era a mulher dele.
o coro das vésperas, pavões brancos
e mapas da América já bem gastos.
Não gostava de crianças chorando,
nem de chá com geléia de framboesa
e nem de mulheres histéricas
...e eu era a mulher dele.
Notas: Uma referência aos problemas de seu primeiro casamento com o poeta Nikolái Gumilióv, sumariamente executado em 1921 por ter sido acusado de conspiração contra a revolução comunista.
Anno Domini MCMXXI
(publicado em 1922)
(publicado em 1922)
Não estás mais entre os vivos.
Da neve não podes erguer-te.
Vinte e oito baionetadas.
Cinco buracos de bala.
Da neve não podes erguer-te.
Vinte e oito baionetadas.
Cinco buracos de bala.
Amarga camisa nova
cosi para o meu amado.
Esta terra russa gosta,
gosta do gosto do sangue.
cosi para o meu amado.
Esta terra russa gosta,
gosta do gosto do sangue.
Notas: Neste livro a marca do nacionalismo é muito forte, apesar do amor, a perda e a separação continuarem a ser os temas predominantes.
Junco - Tróstnik
(reunião de poemas de 1924 a 1940)
À Musa (1924)
Quanto, à noite, espero a tua chegada,
a vida me parece suspensa por um fio.
Que importam juventude, glória, liberdade,
quando enfim aparece a hóspede querida
trazendo nas mãos a sua rústica flauta?
Ei-la que vem. Soergue o seu véu,
olha para mim atentamente.
E lhe pergunto: "Foste tu quem a Dante
ditou as páginas do Inferno?". E ela: "Sim, fui eu".
olha para mim atentamente.
E lhe pergunto: "Foste tu quem a Dante
ditou as páginas do Inferno?". E ela: "Sim, fui eu".
Notas: A inspiração, neste caso, não é o sofrimento. A musa agora é uma hóspede querida, ansiosamente esperada, e nenhum dos bens terrenos parece tão atraente quanto o dom da criatividade.
Réquiem: Um Ciclo de Poemas
(1935 - 1940)
(1935 - 1940)
Dedicatória (1940)
Diante dessa dor, as montanhas se inclinam
e o grande rio deixa de correr.
Mas os muros das prisões são poderosos
e, por trás deles, estão as "tocas dos condenados"
e a saudade mortal.
É para os outros que a brisa fresca sopra,
é para os outros que o pôr-do-sol se enternece -
mas nada sabemos disso: somos as que, por toda parte,
só ouvem o odioso ranger das chaves
e o passo pesado dos soldados.
Levantávamo-nos como para o culto da madrugada,
arrastávamo-nos por esta capital selvagem,
para nos encontrarmos lá, mais inertes do que os mortos,
o sol cada vez mais baixo, o Neva mais nevoento,
enquanto a esperança cantava bem ao longe...
O veredito... e as lágrimas de súbito brotam.
E ei-la separada do mundo inteiro
como se seu coração a vida se arrancasse,
como se com um soco a derrubassem.
E, no entanto, ela ainda anda... cambaleando... sozinha...
Onde estão, agora, as companheiras do infortúnio
desses meus dois anos de terror?
O que estarão vendo, agora, na neblina siberiana?
A elas eu mando a minha última saudação.
e o grande rio deixa de correr.
Mas os muros das prisões são poderosos
e, por trás deles, estão as "tocas dos condenados"
e a saudade mortal.
É para os outros que a brisa fresca sopra,
é para os outros que o pôr-do-sol se enternece -
mas nada sabemos disso: somos as que, por toda parte,
só ouvem o odioso ranger das chaves
e o passo pesado dos soldados.
Levantávamo-nos como para o culto da madrugada,
arrastávamo-nos por esta capital selvagem,
para nos encontrarmos lá, mais inertes do que os mortos,
o sol cada vez mais baixo, o Neva mais nevoento,
enquanto a esperança cantava bem ao longe...
O veredito... e as lágrimas de súbito brotam.
E ei-la separada do mundo inteiro
como se seu coração a vida se arrancasse,
como se com um soco a derrubassem.
E, no entanto, ela ainda anda... cambaleando... sozinha...
Onde estão, agora, as companheiras do infortúnio
desses meus dois anos de terror?
O que estarão vendo, agora, na neblina siberiana?
A elas eu mando a minha última saudação.
Notas: Este poema foi escrito durante a primeira fase do encarceramento de seu filho Liev Gumilióv, cuja única acusação tinha sido a de ser filho de um poeta que, uma década antes, fora fuzilado.
Fonte de Consulta: Anna Akhmátova - Poesia 1912 - 1964 - Editora L&PM, 1991 - Seleção, Tradução e Notas de Lauro Machado Coelho.
Comentários
Assim que pode, pediu autorização para trabalhar numa embaixada da França, conseguiu por ser muito hábil, e se exilou. Anteviu o que viria logo após. Oráculo a seu modo e maneira.
Anna pareceu para mim que aumentava sua verve quanto mais ela sofria. Rara capacidade. De sofrer e de poetar. Belo post. Parabéns. Abraços.
um abraço,
clara lopez
O poema abaixo, escrito em 1922, justifica esta opção de vida (tentei postar apenas uma parte mas não consegui):
Não estou com aqueles que abandonaram a terra / às dilacerações do inímigo. / Ás suas grosseiras lisonjas não cedo. / A eles não darei minhas canções.
Para mim, o exilado é digno de dó, / como quem está preso ou está doente. / Sombria é a tua estrada, peregrino, / vermes infestam o teu pão estrangeiro.
Mas aqui, em meio à fumaça do incêndio, / que consome o que resta da nossa juventude, sabemos que nem um pouquinho / nos afastaremos de nós mesmos.
E sabemos que, na hora do acerto final, / cada um de nossos momentos estará justificado... / Não há no mundo gente mais sem lágrimas, / mais simples e orgulhosa do que nós.
Adorei.
Bom final de semana.
Justamente sobre esses autores existe pouca informação disponível, mesmo na Internet. Por exemplo, o livro que eu citei no final do post, da editora L&PM, já está fora de catálogo. No site da editora parece que só há intereresse em publicar "pocket books".
Adoro poetas russos. E confessso que Anna Akhmátova, eu não conhecia.
Obrigado pelo comentário no meu blog.
at+
JU Gioli
Kovacs, você sempre me doa momentos de pura literatura. Fico sempre emocionada por aqui.
Belíssimo post. Rebuscado. Sempre competente.
Beijo.
Realmente os poemas são lindos.
Se vc tiver algo mais desta poeta por farvor envie para o meu email?
tatiromeu@mac.com