Sándor Márai - De Verdade

Literatura húngara
Sándor Márai - De Verdade - Editora Companhia das Letras - 445 páginas - Publicação 2008 - Tradução direta do húngaro por Paulo Schiller.

Um dos maiores escritores em língua húngara de todos os tempos, Sándor Márai (1900-1989) abandonou a Hungria em 1948 por não concordar com o regime comunista forçado do pós-guerra e, em seu auto-exílio, continuou a escrever apenas em húngaro (uma língua excepcionalmente difícil e literária, como bem destacou Chico Buarque no seu romance Budapeste), tendo sido censurado em sua terra natal até o fim da ocupação russa. Foi justamente no ano da queda do muro de Berlim e com a consequente abertura política do leste europeu, quando poderia então retornar para a Hungria, que Márai suicidou-se com um tiro na cabeça em San Diego nos EUA em fevereiro de 1989, talvez acreditasse que a vida não tinha mais sentido após a perda da mulher Lola Matzner em 1986 e do filho adotivo Janós no ano seguinte.

Neste romance, a prosa elegante de Márai assume um tom existencialista para discutir os labirintos e surpresas do amor nas relações humanas, um tema recorrente na literatura e, por isso mesmo, difícil de se tratar com originalidade. A estrutura do livro tem como base os monólogos de quatro narradores que, ao longo de quarenta anos, contam uma mesma história à partir de diferentes pontos de vista. É neste jogo de contrastes que o autor demonstra como não existe uma única verdade e como esta pode ser subjetiva, em função da cultura, classe social e, finalmente, dos interesses envolvidos.

Inicialmente, Ilonka descreve a uma amiga, durante uma tarde em uma confeitaria de Budapeste, a trajetória do seu casamento acabado e a forma como o ex-marido Péter se apaixonou por Judit, a criada da casa de seus pais. É a fala de uma mulher que ainda está ligada ao antigo parceiro, mas sabe da impossibilidade de salvação para o seu amor e deixa claro logo no parágrafo de abertura a sua dependência afetiva: "Veja aquele homem. Espere, não olhe agora, vire-se para mim, vamos conversar. Eu não gostaria que ele olhasse para cá, que me visse, não gostaria que me cumprimentasse. Agora pode olhar de novo... O homem baixo, atarracado, com o casaco de pelo de gola de marta? Não, nada disso. Aquele alto, pálido, de sobretudo preto, conversando com a garçonete magra. Está pedindo a ela que embrulhe cascas de laranja cristalizada. Interessante, para mim ele nunca comprou laranja cristalizada."

Em seguida, Péter, o ex-marido de Ilonka, narra a um amigo a sua versão sobre a separação e a fixação por Judit, obsessão que o persegue por muitos anos, mas sem ter a coragem necessária para vencer as barreiras sociais da época. O próprio Péter resume a ilusão de sua paixão: "Um dia despertei, sentei na cama e sorri. Nada mais doía. E de súbito compreendi que não existe mulher de verdade. Nem na terra nem no céu. Não existe em lugar algum, aquela. Existem apenas pessoas, e em todas há um grão da verdadeira, e nenhuma delas tem o que do outro nós esperamos e desejamos."

Trinta anos mais tarde, Judit que é a personagem mais forte do romance, conta a sua verdade para o novo namorado músico, a maneira como ela conseguiu vencer as diferenças sociais e conquistar Péter, fica patente então o seu ressentimento pela condição de pobreza da sua família e a vingança que conseguiu realizar ao conquistar o patrão: "Quando os ricos de verdade são deixados nus em pêlo, eles conservam uma fortuna escondida que nenhuma força terrena consegue tirar deles... (...) Era assim que eu me sentia quando pensava nos ricos. Não os odiava por causa do dinheiro, das mansões, das pedras preciosas. Não era uma proletária rebelde, nem uma trabalhadora com consciência de classe, nada disso... Por que não? Porque eu vinha de tais profundezas que sabia de mais coisas que as declamadas do alto dos barris."

Judit descreve também a sua relação com Lázár, famoso escritor e amigo de Péter, e o tempo que passaram juntos entre os escombros de Budapeste bombardeada à espera da tomada da cidade pelos russos. A maneira como Lázár, um apaixonado pela literatura e pelas palavras desiste de escrever por acreditar que a cultura havia acabado no país: "Por isso ele não esperava mais nada das palavras. Não acreditava que as palavras racionalmente ordenadas pudessem ajudar o mundo e as pessoas. E, de fato, nesta nossa época as palavras foram particularmente distorcidas... sabe, também a palavra simples, de pessoa para pessoa, como nós estamos nos falando agora. Isso tudo é inútil, como nos monumentos. Na realidade, a palavra humana se transformou numa espécie de choro... se transformou, com os grandes alto-falantes que chiam e gritam. Ele não acreditava mais nas palavras... mas ainda gostava delas, as saboreava, as engolia. Com uma ou outra palavra húngara ele bebia até se embriagar, de noite, na cidade escurecida..."

Na última parte do romance, em Nova York, o músico e confidente de Judit, faz uma crítica à burguesia e também à equivocada política comunista que não consegue cumprir a promessa de libertação do povo.

Comentários

Ricardo Duarte disse…
Kovacs,
Essa ideia de verdade mutável me fascina - Pirandello foi o primeiro a me chamar a atenção para isso. Não é à toa que meus escritores favoritos são os que trabalham com a questão do ponto de vista: Machado, Henry James, V. Woolf, Joyce, Faulkner, o próprio Pirandello...

Vou procurar o livro do S. Márai - só a capa já me deixou curioso (um livro que fala sobre a verdade e coloca cadeiras vazias para ilustrar isso é bem sugestivo). Com sua resenha, então, está mais do que aceito em minha lista de futuras leituras.

Abraços
Alexandre Kovacs disse…
Ricardo, posso garantir que Sándor Márai merece estar incluído nesta relação que você citou, um grande escritor sem dúvida. Pode incluir na sua lista de "futuro breve" livro a ser lido!
vera maria disse…
Kovaks, sua resenha dá um espaço importante ao discurso narrativo de Márai, e vc escolhe muito bem os trechos, quem quiser conhecer essa absoluta obra prima está muito bem encaminhado por sua leitura.
um abraço,
clara lopez
Alexandre Kovacs disse…
Clara, gostaria de citar a sua própria resenha lá no "Linha de Pesca" e até mesmo como uma outra visão da obra de Márai (http://linhadepesca.blogspot.com/2008/07/de-verdade.html):

"Márai usa a palavra como um bisturi e a frase vai dissecando cada ângulo, cada minúcia, cada vão desses compartimentos que guardam os segredos daqueles que escolhem ficar com alguém, dividir camas e humores, sentimentos, claro, e expectativas, alegrias, lutos, lutas e tréguas"
Alexandre Kovacs disse…
La Strega, grande coincidência pois meu pai também era húngaro e coincidência maior, seu nome também era Sandor que significa Alexandre na intrincada língua húngara. Obrigado pelo comentário e posso garantir que você irá adorar o livro.
vera maria disse…
Merci, kovacs, tenha um ótimo 2010 e ótimas leituras.
um abraço,
clara
Maria Augusta disse…
Kovacs, realmente a língua húngara é complicada, quando estive na Hungria não conseguia entender nada nem com dicionário rs. Gostei muito desta resenha, é verdade que a mesma história contada por várias pessoas ganha muito em profundidade e mostra como o universo de cada um é afetado de forma diferente pelo mesmo fato. Deve ser um livro muito interessante, vai entrar na minha listinha de 2010.
Aproveito a ocasião para desejar a você e aos seus muita saúde e sucesso em 2010, que este ano traga tudo que vocês desejam.
Um grande abraço.
Alexandre Kovacs disse…
Clara, eu é que agradeço e desejo um ótimo 2010 para você também!
Alexandre Kovacs disse…
Maria Augusta, o pior é que a maioria da população húngara não domina o inglês, talvez devido aos anos da cortina de ferro, fato este que complica ainda mais a vida dos turistas por lá, mas Budapeste não deixa de ser uma linda cidade que é chamada por vezes de "a Paris do leste europeu".
Susy Freitas disse…
nossa, não conhecia Sándor Márai e fiquei fascinada, tanto pela história dele como pela estória que ele retrata no livro. quando li "budapeste", me bateu tanta curiosidade de ler algo de um húngaro, ver como tudo se encaixa, ainda que através de tradução, e tentar notar pra onde o texto é levado por conta dessa língua tão estranha. sua dica veio bem a calhar, e não me esquecerei dela até recuperar minhas finanças de universitária pobre pós-natal. :)
Alexandre Kovacs disse…
fdots, acredito, sem a menor dúvida, que a língua e a herança cultural podem influenciar na (boa) literatura e Sándor Márai é uma prova disso. Assim que você reforçar o seu orçamento recomendo comprar este romance!
Alexandre Kovacs disse…
Caro amigo Djabal, são tantas indicações que não conseguimos seguir essa lista interminável de livros (ainda bem). Fico sempre feliz com a sua visita e obrigado por comentar!
Gil Nunes disse…
Olá Caro Kovacs!
Li três livros do Sándor Márai. De imediato, afirmo que não tenho preferência por nenhum deles. A singularidade que faz da obra desse artista algo sublime, é encontrada em todas elas. Talvez alguns atribuirão ao romance "As brasas" sua obra-prima. No entanto, seria injustiça demais para com os outros. E De Verdade, sem dúvida alguma figura não somente entre os maiores do autor, mas entre os maiores da literatura contemporânea. Essa forma crível com que Ele descreve os sentimentos humanos, é absolutamente fascinante.
Sua resenha ficou ótima, vou voltar aqui mais vezes. Abraços e boas leituras!
Alexandre Kovacs disse…
Gil Nunes, obrigado pelo comentário gentil e seja muito bem-vindo.

Ainda espero uma oportunidade para ler "As Brasas" de Sándor Márai e, assim que possível, vou resenhar por aqui.
Marcelo Martins disse…
Comprei esse livro essa semana mas ele ainda não chegou. Conhecia pouco desse autor, não sei como chegue até ele, foi como se o livro me encontrasse.
Excelente resenha.
Abraço

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