Jonathan Franzen - Pureza

Literatura norte-americana
Jonathan Franzen - Pureza - Editora Companhia das Letras - 616 páginas - Tradução de Jorio Dauster - Lançamento no Brasil: 25/05/2016.

Em seu mais recente lançamento, o americano Jonathan Franzen corre novamente os riscos de escrever um romance de seiscentas páginas em contraste com a tendência atual, principalmente no Brasil, de narrativas curtas e em geral de autoficção, estilo que possibilita uma estratégia editorial de melhor retorno financeiro e de maior frequência de exposição do autor na mídia. Neste seu quinto romance, após os premiados "As Correções" (2001) e "Liberdade" (2010), Franzen mais uma vez trabalha na contramão dessa lógica, provando que ainda existe espaço para a boa e velha instituição do romance realista em pleno século XXI. 

Não por acaso ele foi escolhido em 2010 para a capa da revista Time com a alcunha "Great American Novelist" (o que o coloca na companhia de alguns poucos grandes escritores que receberam tal distinção: Salinger, Nabokov, Toni Morrison, James Joyce e John Updike), segundo a conceituada revista, a escolha não se deveu ao fato de Franzen ser famoso, rico ou criar personagens com poderes mágicos, mas sim por ele refletir sobre o comportamento e valores da sociedade americana na atualidade, papel similar ao exercido por grandes romancistas do passado como Tolstoi e Victor Hugo. É claro que não podemos comparar autores de épocas tão diferentes; mudou a sociedade e, portanto, mudaram os escritores. O fato é que, desde o século XIX, permanece o interesse dos leitores em bons romances.

No entanto, se por um lado este seu último livro apresenta uma forma de construção clássica, por outro, o conteúdo não poderia ser mais atual, refletindo a nossa inusitada existência virtual nas redes sociais, a exposição do indivíduo na internet e ainda a relação entre as agências de notícias e os movimentos especializados no vazamento de informações de grandes corporações e governos, como a WikiLeaks de Julian Assange ou o ativismo de Edward Snowden. Um dos protagonistas, o carismático Andreas Wolf, se tornou uma personalidade mundial ao desenvolver um projeto chamado "Luz do Sol", semelhante ao WikiLeaks, mas o mesmo Andreas, de forma contraditória, esconde um segredo terrível em seu passado na antiga Alemanha Oriental, um segredo que está convenientemente escondido dos motores de busca da internet e também dos arquivos da polícia secreta da época, a temida Stazi. O trecho abaixo mostra o cuidado e a dedicação com que Andreas Wolf descobre e divulga os segredos de todo o mundo, exceto os seus próprios.
"O lema de Wolf e de seu projeto era 'A luz do sol é o melhor desinfetante'. Nascido em 1960 na Alemanha Oriental, ele se destacara na década de 1980 como um crítico ousado e espetaculoso do regime comunista. Depois da queda do Muro de Berlim, liderara uma cruzada para que os arquivos imensos da polícia secreta da Alemanha Oriental fossem preservados e abertos ao público; nesse caso, só era odiado pelos ex-informantes da polícia, cuja reputação, depois da reunificação, tinha sido manchada pela exposição de seu passado à luz do sol. Wolf fundara o Projeto Luz do Sol em 2000, focando inicialmente em diversos malfeitos alemães, mas logo depois ampliando sua área de atuação para injustiças sociais e os segredos tóxicos para o mundo todo. Centenas de milhares de imagens mostravam se tratar de um homem muito bonito e que aparentemente nunca se casara ou tivera filhos. Fugira de uma condenação na Alemanha em 2006 e da Europa em 2010, recebendo asilo primeiro em Belize e mais recentemente na Bolívia, cujo presidente populista, Evo Morales, era seu fã. A única coisa que Wolf mantinha em segredo era a identidade de seus principais financiadores (gerando um terabyte ou dois de conversações eletrônicas sobre sua 'inconsistência') e a única coisa vagamente duvidosa sobre ele era sua intensa rivalidade com Assange. Wolf, de forma irônica, havia menosprezado os métodos e a vida particular de Assange, enquanto Assange se contentara em fingir que Wolf não existia. Wolf gostava de comparar os WikiLeaks — segundo ele 'uma plataforma neutra e não filtrada' - com a clareza de propósito de seu projeto Luz do Sol, estabelecendo uma distinção moral entre seu 'motivo benigno e abertamente admitido' de proteger a privacidade de seus financiadores e os 'motivos malignos e ocultos' daqueles cujos segredos ele expunha." (págs. 71 e 72)
Apesar do título, baseado no nome de uma das protagonistas, Purity Tyler, nenhum personagem parece ser puro o suficiente no romance de Franzen, sendo os dilemas morais comuns a todos em diferentes níveis a começar pela própria Purity que recebe o apelido de Pip (homenagem ao jovem Pip do clássico "Great Expectations" de Charles Dickens). Ela é o ponto de partida da narrativa, uma jovem californiana de 22 anos que divide uma casa ocupada ilegalmente com outros jovens anarquistas e não sabe quem é seu pai, um mistério que a mãe sempre se recusou a esclarecer. Ela estará disposta a cruzar os limites da moral e ética para descobrir a identidade do pai. Mas, afinal, é possível manter um segredo em plena era digital, em um mundo no qual a exposição nas redes sociais é uma prática quase obrigatória? Em busca de respostas, Pip aceita o convite para trabalhar no projeto "Luz do Sol" de Andreas Wolf na Bolívia.

A trama é conduzida de forma a deixar pistas em cada capítulo sobre a origem de Purity Tyler, alternando passado e presente. Um tema paralelo e associado à sua origem, ao longo de todo o romance, é a conturbada história de amor entre Tom Aberant  e Anabel (aqui é preciso cuidado para não cair no erro da resenha spoiler). Tom é um jornalista investigativo que conheceu Andreas Wolf na época da queda do Muro de Berlim e a única pessoa que conhece o seu segredo. A descrição das crises no relacionamento entre o inexperiente Tom e a lunática Anabel é magistralmente conduzida, principalmente em um único capítulo narrado em primeira pessoa, indício que nos leva a pensar o quanto de autobiográfico Franzen colocou neste texto.
"Anabel se recusava a ver que simplesmente havia alguma coisa quebrada em nosso relacionamento, quebrada sem possibilidade de conserto e de atribuição de culpa. Durante nossa orgia anterior, havíamos conversado por nove horas sem parar, com pausas apenas para ir ao banheiro. Pensei que, por fim, tinha conseguido lhe mostrar que a única forma de escaparmos de nosso sofrimento consistia em renunciarmos um ao outro e nunca mais nos comunicarmos: que as conversas de nove horas eram elas próprias a doença que supostamente estariam tentando curar. Essa era a versão de nós que ela me telefonara para rejeitar naquela manhã. Mas qual a sua versão? Impossível dizer. Ela era tão moralmente segura de si, a todo momento, que eu tinha sempre a sensação de que chegávamos a algum lugar; só depois eu via que tínhamos nos movido num círculo enorme e vazio. Apesar de toda a sua inteligência e sensibilidade, ela não somente não fazia sentido, mas também se mostrava incapaz de reconhecer tal coisa; e era terrível ver isso numa pessoa a quem eu fora profundamente devotado e a quem prometera cuidar por toda a vida. Por isso tinha de continuar a trabalhar com ela para fazê-la compreender que não podia continuar a trabalhar com ela." (págs. 359 e 360)
Uma das melhores passagens do livro é o capítulo que descreve a infância e juventude de Andreas Wolf na Alemanha Oriental, uma espécie de romance dentro do romance, até a histórica queda do Muro de Berlim em 1989. Mais interessante ainda é a criativa comparação entre o regime totalitário da antiga República Democrática Alemã (RDA), que de democrática não tinha absolutamente nada, e o domínio da internet e das redes sociais no mundo atual. Uma questão importante para pensarmos sobre a aparente liberdade virtual que pensamos viver e a perda completa da nossa identidade e privacidade na imensa nuvem digital que nos cerca.
"A velha República sem dúvida se destacara em matéria de vigilância e paradas militares, porém a essência de seu totalitarismo tinha sido alguma coisa mais corriqueira e sutil. A pessoa podia cooperar com o sistema ou se opor a ele, mas o que jamais podia fazer, quer estivesse levando uma vida segura e agradável, quer se encontrasse na prisão, era não manter alguma relação com ele. A resposta a todas as perguntas, grandes ou pequenas, era o socialismo. Substituindo 'socialismo' por 'redes' tem-se a internet. Suas plataformas, embora competindo entre si, estão unidas pela ambição de definir todos os componentes da existência de alguém. (...) Os privilégios possíveis na República tinham sido insignificantes — um telefone, um apartamento com algum ar e luz, a importantíssima permissão para viajar —, mas talvez não tão insignificantes quanto ter 'n' seguidores no Twitter, um perfil muito curtido no Facebook, uma aparição ocasional  de quatro minutos na CNBC." (págs. 490 e 491)

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