Elena Ferrante - História de quem foge e de quem fica

Literatura - Elena Ferrante
Elena Ferrante - História de quem foge e de quem fica: Tempo intermédio - Série Napolitana, terceiro romance - Editora Globo, Biblioteca Azul - 416 páginas - Tradução: Maurício Santana Dias - Lançamento no Brasil: 19/10/2016.

O curioso nesta tetralogia napolitana de Elena Ferrante é que cada volume consegue  superar o anterior, tanto em termos de cuidado na construção dos personagens quanto pela fluência da narrativa, provocando um delicioso estado de ansiedade no leitor pelo próximo lançamento da série. Após os dois ótimos primeiros volumes: "A amiga genial" e "História do novo sobrenome", respectivamente sobre a infância e juventude de Lila Cerullo e Elena Greco (sigam os links para as duas resenhas), este terceiro romance é focado na fase adulta das amigas e nos muitos obstáculos que a vida traz para ambas, principalmente durante os anos setenta, um período conturbado da história da Itália, conhecido como "Anos de chumbo", que foi marcado por conflitos políticos, atos terroristas e reivindicações sociais em todo o país.

O título, apesar de um pouco estranho, resume muito bem o que ocorre no romance, Elena ou Lenu, como é conhecida em seu bairro de origem, consegue escapar de um destino de preconceito e violência em Nápoles ao realizar um sonho de infância, escrevendo um livro que se torna sucesso de vendas e obtendo reconhecimento acadêmico pela sua formação intelectual, conquistada com muito esforço. Ela conhece Pietro, jovem professor universitário conservador de uma família conceituada e rica, e decidem morar juntos em Florença enfrentando os protestos da família de Lenu por dispensarem a cerimônia religiosa do casamento, um escândalo na época. Logo, tudo parecia se encaixar no seu desejo de abandonar ou fugir do bairro violento, longe de sua família e amigos, "O essencial era ir embora de Nápoles".
"Quando me formei, quando escrevi de jato uma história que, de modo totalmente inesperado, em poucos meses se transformou em um livro, os elementos do mundo de onde eu vinha me pareceram ainda mais deteriorados. Enquanto em Pisa ou Milão eu me sentia bem, às vezes até feliz, em minha cidade natal temia a cada retorno que algum imprevisto me impedisse de fugir dali, que as coisas que eu tinha conquistado fossem tiradas de mim. Não poderia mais encontrar Pietro, com quem deveria me casar em breve; o espaço impecável da editora me seria vetado; não poderia mais usufruir as gentilezas de Adele, minha futura sogra, uma mãe como nunca tive. Já no passado a cidade me parecera lotada, uma única multidão que se estendia da piazza Garibaldi até Forcella, Duchesca, Lavinaio, Rettifilo. No final dos anos 1960, tive a impressão de que a multidão aumentara, de que a intolerância e a agressividade estavam se espalhando de modo incontrolável. (...) Enfim, cada ano me parecia pior. Naquele período de chuvas, a cidade estava mais colapsada, um prédio inteiro pendera de lado como uma pessoa que se apoia no braço carcomido de uma velha poltrona e o braço cede. Mortos, feridos. E gritos, massacres, bombas caseiras. Parecia que a cidade gerava nas vísceras uma fúria que não conseguia extravasar e por isso mesmo a corroía, ou irrompia em pústulas epidérmicas, inchadas de veneno contra todos, crianças, adultos, velhos, gente de outras cidades, americanos da Otan, turistas de qualquer nacionalidade, os próprios napolitanos. Como era possível resistir naquele lugar de desordem e perigo, na periferia, no centro, nas colinas, sob o Vesúvio?" (Págs. 16 e 17)
Já Lila, precisou ficar. Ela não teve tanta sorte quanto a amiga de infância e pagou um preço alto por suas escolhas impulsivas, principalmente depois do fracassado casamento prematuro, quando decidiu abandonar o marido com um filho pequeno, devido a uma paixão cega por Nino, colega de infância do bairro. Lila ficou em Nápoles, morando em um bairro pobre da periferia chamado San Giovanni a Teduccio, trabalhando como operária em uma fábrica local de embutidos. Ao se envolver com os problemas e reivindicações da classe operária ela chega no limite de suas forças e acaba pedindo ajuda para a velha amiga Elena que consegue, com a influência da família de seu marido, ajudá-la a se equilibrar novamente e encontrar um novo caminho na vida. O trecho abaixo descreve um dos conflitos entre estudantes que distribuíam panfletos políticos sobre as péssimas condições de trabalho na fábrica onde Lila trabalhava e um grupo de fascistas, espécie de milícia que representava os interesses dos patrões.
"Lila se esqueceu da febre, do cansaço e correu para o portão, mas sem um propósito definido. Não sabia se queria ter uma visão mais clara, se queria ajudar os estudantes, se simplesmente era movida por um instinto que sempre tivera e em virtude do qual as pancadas não a atemorizavam, ao contrário, acendiam sua fúria. Mas não fez a tempo de voltar para a rua, precisou esquivar-se para não ser arrastada por um grupinho de operários que estava passando às carreiras pelo portão. Alguns tinham tentado conter os espancadores, certamente Edo e mais uns outros, mas não conseguiram e agora estavam fugindo. Fugiam homens e mulheres, todos perseguidos por dois jovens com barras de ferro. Uma que se chamava Isa, uma funcionária, gritou correndo para Filippo: intervenha, faça alguma coisa, chame os guardas; e Edo, que estava com uma mão sangrando, disse em voz alta para si: vou buscar o machado e depois veremos. Assim, quando Lila chegou à estrada de terra, o carro azul já havia partido e Gino estava entrando no cinza; mas ele a reconheceu, parou estupefato e disse: Lina, você veio parar aqui? Então, puxado para dentro pelos camaradas, deu a partida e arrancou, gritando pela janela, você bancava a madame, cretina, e olha em que merda se transformou." (Pág. 125)
Voltando a Elena, todas as suas conquistas parecem se evaporar quando ela acaba frustrada pela rotina da relação com o marido e as dificuldades da maternidade, situações que a afastam cada vez mais da sua aspiração de se tornar uma escritora. Neste contexto de insatisfação com sua vida pessoal e profissional, Nino reaparece em sua vida, colega do marido que o conhece do meio acadêmico, passando alguns dias na casa deles vindo de Nápoles. A lembrança do verão nas praias de Ischia em que o perdeu para Lila assim como o seu estado de carência atual, acabam provocando a aproximação de Lenu e Nino. O resultado é a conversa obsessiva abaixo (nesta passagem, a autora amplifica o estado de excitação e confusão dos personagens removendo todas as marcações de travessão ou aspas do diálogo) em que os dois amantes se falam por telefone, um dia após terem dormido juntos.
"Mas o telefone tocou, e corri para atender. Era ele, ao fundo se ouvia um autofalante, vozerio, barulho, a voz chegava com dificuldade. Acabara de chegar em Nápoles, estava ligando da estação. Apenas um oi, me disse, queria saber como você está. Estou bem, respondi. O que está fazendo? Me preparando para almoçar com as meninas. Pietro está? Não. Você gostou de fazer amor comigo? Sim. Muito? Muitíssimo. Minhas fichas acabaram. Vá, tchau, obrigada pelo telefonema. Nos ouvimos. Quando você quiser. Fiquei contente comigo, com meu autocontrole. Mantive-o a uma distância correta, disse a mim mesma, a um telefonema de cortesia respondi com cortesia. Mas três horas depois ele tornou a ligar, de novo de um telefone público. Estava nervoso. Por que você está tão fria? Não estou fria. Hoje de manhã você quis que eu dissesse que te amava, e eu disse, embora por princípio eu não diga isso a ninguém, nem a minha mulher. Fico contente. E você me ama? Amo. Vai dormir com ele esta noite? E com quem você quer que eu durma? Não suporto isso. Você não dorme com sua mulher? Não é a mesma coisa. Por que? Não estou nem aí para Eleonora. Então volte para cá. Como faço isso? Se separe. E depois?" (Pág. 387)
Depois de ler este terceiro volume da série napolitana (o melhor dos três primeiros, na minha opinião) e acompanhar de perto a trajetória de Lila e Lenu para conquistar o seu lugar na sociedade, tenho duas certezas sobre a misteriosa Elena Ferrante que até o momento continua tentando manter a sua identidade em segredo — tarefa cada vez mais difícil neste mundinho globalizado em que vivemos — a primeira é que ela domina a arte de contar uma história como poucos autores contemporâneos e a segunda é a constatação óbvia de que Ferrante não pode definitivamente ser um homem, como foi aventado por parte da imprensa italiana, já que somente uma mulher seria capaz de escrever com tanta veracidade e propriedade sobre o universo feminino. Por favor, me corrijam as leitoras caso eu esteja enganado.

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