João Paulo Parisio - Homens e outros animais fabulosos

Literatura brasileira contemporânea
João Paulo Parisio - Homens e outros animais fabulosos - Editora Patuá - 180 Páginas - Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação: Leonardo Mathias - Lançamento: 2018.

Gosto muito quando a literatura contemporânea nos surpreende com textos originais, não somente pelo grau de experimentalismo ou rompimento com o cânone, mas também quando ocorre um fenômeno no sentido contrário e nos deparamos com um escritor que faz do seu ofício um cuidadoso artesanato, utilizando vocabulário erudito em uma estrutura narrativa tradicional para escrever contos modernos e com voz própria, ou seja, ao mesmo tempo em que dá continuidade ao trabalho de gerações anteriores, promove a renovação no cenário da ficção brasileira.

Pode ser que o leitor desavisado imagine que está diante de um neologismo ao encontrar uma palavra como "catasterizados" e ficará surpreso, após uma rápida consulta ao dicionário, tratar-se de um termo da mitologia grega que denomina a transformação de uma personagem, homem, animal ou objeto numa constelação de forma a eternizá-lo no firmamento. É este tipo de descoberta que ocorre nos  contos do pernambucano João Paulo Parisio, onde há influências não somente dos grandes nomes da prosa regionalista nordestina como: Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Rachel de Queiroz ou, mais recentemente, Ronaldo Correia de Brito e Maria Valéria Rezende, mas também autores da literatura clássica universal. Contudo, o mais importante aqui, é o invejável poder de imaginação do autor que cria universos paralelos partindo do frágil equilíbrio entre o real e o fantástico. Na verdade, cada um dos dez contos do livro parece ter sido escrito por um autor diferente, mas sempre com uma ótica humanista e que transborda encantamento e poesia.

Um bom exemplo do realismo mágico ou fantástico de João Paulo Parisio está no texto de abertura, "Boneca-de-Pano", um improvável conto de fadas sobre uma anã que se locomove com o auxílio de um triciclo, trabalhando e morando em um casarão de uma cooperativa de costureiras na periferia da cidade. A sua rotina está prestes a mudar quando tem início uma construção no terreno baldio ao lado do casarão, "um matagal viçoso que tinha lampejos de jardim selvagem, desabrochando grandes flores moles, amarelopálidas, e onde o vento recém-antes presa do labirinto podia aplacar a saudade das vastidões."  Boneca-de-Pano se apaixona por Crispim, operário da construção, será que esta paixão terá um final feliz?
"Olharam-se. Esse olhar, se curto, se longo, certo é que foi imenso. As máscaras caíram  como dentes. Estavam livres, mas ainda não se tinham atingido. Ele usou de toda sua força técnica e experiência para lançar uma ponte instantânea, e com o lado externo da mão pétrea acariciou-lhe o rosto; ela o inclinou numa desconcertada faceirice. Sua nuca foi segura e a boca assaltada com tal ímpeto que quase se desequilibraram e deram alguns passos de involuntária valsa enquanto se beijavam, impressão irrefutável se atentássemos somente para as sombras nas paredes. Ele a tomou nos braços como a uma recém-esposa e a depôs em seu leito com implausível delicadeza. Embriagaram-se dos olhos um do outro, torrente de ambrosia entre eles. Ela afundou as mãos em seus cabelos encaracolados volumosos e secos, aconchegantes como um ninho. A face, áspera, dava arrepios, arrepios aliciantes que a faziam tocá-la ainda uma vez. Puxou-o suavemente para si. Beijaram-se e afagaram-se, arquejantes. Despindo-a até a cintura, Crispim reconheceu-lhe o relevo com línguas e dedos." - Boneca-de-Pano (p. 25)
Até mesmo uma velha folha de papel, prisioneira em uma cômoda de argolas de ferro, pode se tornar protagonista, como em "Apólogo da identidade", um conto que lembra a prosa de Machado de Assis. Que triste destino para uma folha de papel "passar anos e anos em companhia apenas dos próprios pensamentos, monologando aflitivamente, ser um papel vazio, sem palavras, sem números, sem traços, sem nada enfim." É preciso criatividade redobrada para manter o interesse do leitor em um tema tão frágil, mas o autor é bem-sucedido na sua experiência, provando que a mágica de um bom livro não obedece roteiros de escrita criativa.
"Eu era uma velha folha de papel esquecida numa escura e maciça cômoda de argolas de ferro. Rochosa ilha de detenção abandonada à própria sorte, governada pelos sicários. E eu era uma folha vazia. Apenas amarelecera e adquirira manchas senis com o tempo. Durante eras, os cupins deitaram em mim o fino pó da madeira, as traças confabularam do lado de fora, passando ao largo. Um tanto estúpidas, essas tracinhas... Como o cheiro de naftalina na gaveta sobrepujava o meu, jamais cogitaram investigá-la. Bitoladas. As baratas, odiosas, tenazes, astutas baratas, é que me encontraram. Trezentas e trinta e três gerações de baratas transmitiram umas às outras o conhecimento de minha localização. Que terror me tomava quando eu sentia o cheiro inconfundível! Áspero era o som de seus passos enquanto se aproximava, e mesmo na escuridão eu discernia as silhuetas, os grandes olhos negros, gulosos, o frenesi das antenas, e estremecia de asco quando andavam por cima de mim, arranhando-me com as pernas serrilhadas. Se defecavam sobre meu corpo ou me mordiscavam, eu quase sempre desfalecia. Pura maldade. As baratas, que vivem na fartura? Jamais precisariam me incluir na dieta. O mundo lhes pertence, sempre volta a ser herdado por elas." - Apólogo da identidade (p. 29)
"Clepsidra" é um conto dedicado a Ariano Suassuna, uma pequena obra-prima que nos remete ao ambiente selvagem e inóspito do sertão nordestino, um estilo seco e direto que corta como faca, nos fazendo lembrar do velho Graciliano Ramos, e isso não é pouca coisa, diga-se de passagem. A descrição de um parto solitário, onde a pobre mulher abandonada sofre junto das "rachaduras ramificadas do chão, decalques de árvores depenadas, sorvendo-lhe devotamente o sangue". Uma vida miserável e, ainda assim, quase mística, que só a verdadeira literatura pode tentar representar, seja no sertão nordestino ou nas planícies da Sibéria russa é só gente simples tentando sobreviver, apesar de tanta pobreza e de todo o sofrimento.
"Higina parou novamente e enxugou a testa com as costas duma mão. Assaltou-a a dor talvez só menos lancinante por familiar. ainda não era pra ser a hora, mas sendo, era. Depôs o vaso numa pedra chata antes de cair ao lado, arregaçando a saia e abrindo as pernas ao cabo de um duelo com a vergonha. Se não havia ninguém à vista, o olho divino estava sempre lá, o inimigo nunca se sabe, porém já o sentira na envoltura. Mesmo nas culminâncias do suplício, intensificado pelos seixos causticantes, ela repetia convulsa 'Minha Nossa Senhora Meu Pade Padim Ciço, Minha Nossa Senhora Meu Pade Padim Ciço, Minha Nossa Senhora Meu Pade Padim Ciço...', e apertava com a mão direita um escapulário contendo cabelo daquela e com a esquerda uma imagenzinha deste, ambos atados a um cordão, e isso numa voz tolhida, pois mordia o pano que, enrodilhado, acomodara o vaso no topo de seu crânio. Expulso da tépida e fluida escuridão do abrigo e atirado num cenário irrestrito de luz ferina e contundência, ao deflorar dos olhos o primeiro choro do rebento reboou como uma afirmação de si perante a hostilidade circundante: viverei ainda assim. Ajustando a boquinha exigente ao seio flácido, contudo, a mãe resumiu o grito a uns grunhidos sôfregos, e experimentou acalentá-lo fora do corpo, sussurrando ternura, borbotando amor. Dera mais um ao mundo." - Clepsidra (pp. 82 e 83)
Anotem aí: João Paulo Parisio nascido em 4 de setembro de 1982, no Recife, Pernambuco. Publicou, pela Cepe Editora, Legião Anônima, contos (2014), e Esculturas Fluidas, poemas (2015). Algo me diz que ainda ouviremos falar muito neste autor nos próximos anos, estilo próprio, criativo e verdadeiro. Que bom, a literatura sempre encontra um jeito de se renovar.

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