Ruy Proença - Monstruário de fomes
Ruy Proença - Monstruário de fomes - Editora Patuá - 112 Páginas - Capa, projeto gráfico e diagramação de Rodrigo Sommer - Lançamento: 2019.
Ruy Proença trabalha com o poema em forma de prosa e procura inspiração em elementos fora da poesia que se convencionou chamar de tradicional, como já deixa claro a partir do título. Em alguns trechos a ingenuidade nonsense e a leveza surrealista me lembram de Boris Vian:
"guarda-chuvas são animais solitaríssimos. quando adoecem, são abandonados por seus donos. muitas vezes, os encontro no meio-fio, encolhidos, com uma costela quebrada. encontro-os gemendo baixinho, ensopados da cabeça às patas, como se já estivessem mortos. [...]" - ENFERMARIA (p. 23)
Contudo, em outras passagens, como no poema AGORA, uma longa prece sobre o absurdo da existência humana, fica claro que o pior monstro não pode ser imaginado porque já faz parte da nossa realidade, é quando perdemos o ônibus e a esperança:
"agora na fruteira o mamão apodrece agora o céu escurece agora apedrejam agora a lua rachou agora na rua o cachorro sou eu agora não mais tenho mulher agora a tira da havaiana se rompeu agora perco o ônibus e a esperança [...]" - AGORA (p. 87)
Dividido em duas partes, Estetoscópio e Papel-carbono, os poemas em prosa ganham uma liberdade de estrutura que reforça muito o poder das imagens como podemos constatar nos três exemplos abaixo. Como bem destacado por Renan Nuernberger no posfácio da obra: "Sob a aparente normalidade do cotidiano, eclode uma ambígua sensação de desamparo na poesia de Ruy Proença. As coisas estão todas ali, em seus devidos lugares, à disposição de quem as observa: um guarda-chuva, uma mexerica, uma centopeia. De repente, ei-las deslocadas, como se uma força secreta as evocasse, dando-lhes uma fantástica vivacidade."
O AMOR
O amor é uma pinguela sobre um precipício. quem ama deve verificar todos os dias as tábuas, os parafusos, as porcas, as cordas. proclamar à exaustão alto e bom som: "eu te amo", "eu te amo". trazer flores do vendedor do semáforo. programar viagens para Istambul, São Petersburgo. achar água no deserto. inventar miragens. lapidar o diamante bruto do senso comum. deixar-se iludir pelo boca a boca. o amor é um produto falso contrabandeado do país vizinho?
TERMÔMETRO
um pássaro pousou na fratura exposta pensando estar num galho. o pássaro não faz ideia do sangue pisado por onde pisa. tampouco faz julgamento moral. o pássaro é um ser lírico. feito para entoar uma ária, que repete pela vida afora, procurando seduzir. fosse um ser político, não assobiava. passava a vida arquitetando artimanhas para nunca deixar a política, nunca perder o poder, nunca perder o poder de decretar o certo e o errado (para si). sabemos que poder e dinheiro gostam de andar juntos. há muitas maneiras de facilitar ou dificultar as coisas quando se quer ganhar dinheiro. há bem poucos homens públicos que não se guiam por dinheiro. Mujicas são raros. os pássaros cantam o que já nasceram predestinados a cantar. papagaios não cantam, no máximo repetem palavras ocas, divertidas. só os músicos poderiam cantar a política. mas estes andam muito deprimidos.
AGORA
agora na fruteira o mamão apodrece agora o céu escurece agora apedrejam agora a lua rachou agora na rua o cachorro sou eu agora não mais tenho mulher agora a tira da havaiana se rompeu agora perco o ônibus e a esperança agora roubaram minha graça agora as estrelas se afogam agora meus olhos são míopes agora no lixo a salamandra e minha Szymborska agora minha mãe morreu agora o mar me derruba agora a morte me tira para dançar agora a cerveja está quente agora o pneu furou agora a faca de legumes me corta agora a canção me faz chorar agora o mundo sempre injusto agora entraram em minha casa agora as milícias matam o diferente e o igual agora a mata me perde agora nos presídios os evangélicos são facção agora passo fome agora não tenho nome agora meu amigo se foi agora meu eu se parte agora o vinho avinagra agora o leite azeda e transborda agora a vida é um bordel agora não tem mais por quê agora perco o sono agora perdi coisas e peso agora perdi o medo agora quero voar agora busco calor agora busco o sol agora sou coletivo agora sou cidadão agora grito meu sonho agora sou multidão agora sou uma voz agora atravesso paisagens agora cruzo países agora sou flecha a caminho agora nunca termino
Sobre o autor: Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (organização de Adilson Miguel, Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (organização de Ricardo Vieira de Lima, Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007), Um certo Pena, de Henri Michaux (Pãooupães Editorial, 2017) e, de Paol Keineg, Histórias verídicas (Dobra, 2014), Dahut (Espectro Editorial, 2015) e Entre os porcos (Pãooupães Editorial, 2018). É autor dos livros de poesia Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007) e Caçambas (Editora 34, 2015). Publicou também os poemas infantojuvenis de Coisas daqui (Edições SM, 2007) e Tubarão vegano e outros elementos (Espectro Editorial, 2018).
"guarda-chuvas são animais solitaríssimos. quando adoecem, são abandonados por seus donos. muitas vezes, os encontro no meio-fio, encolhidos, com uma costela quebrada. encontro-os gemendo baixinho, ensopados da cabeça às patas, como se já estivessem mortos. [...]" - ENFERMARIA (p. 23)
Contudo, em outras passagens, como no poema AGORA, uma longa prece sobre o absurdo da existência humana, fica claro que o pior monstro não pode ser imaginado porque já faz parte da nossa realidade, é quando perdemos o ônibus e a esperança:
"agora na fruteira o mamão apodrece agora o céu escurece agora apedrejam agora a lua rachou agora na rua o cachorro sou eu agora não mais tenho mulher agora a tira da havaiana se rompeu agora perco o ônibus e a esperança [...]" - AGORA (p. 87)
Dividido em duas partes, Estetoscópio e Papel-carbono, os poemas em prosa ganham uma liberdade de estrutura que reforça muito o poder das imagens como podemos constatar nos três exemplos abaixo. Como bem destacado por Renan Nuernberger no posfácio da obra: "Sob a aparente normalidade do cotidiano, eclode uma ambígua sensação de desamparo na poesia de Ruy Proença. As coisas estão todas ali, em seus devidos lugares, à disposição de quem as observa: um guarda-chuva, uma mexerica, uma centopeia. De repente, ei-las deslocadas, como se uma força secreta as evocasse, dando-lhes uma fantástica vivacidade."
O AMOR
O amor é uma pinguela sobre um precipício. quem ama deve verificar todos os dias as tábuas, os parafusos, as porcas, as cordas. proclamar à exaustão alto e bom som: "eu te amo", "eu te amo". trazer flores do vendedor do semáforo. programar viagens para Istambul, São Petersburgo. achar água no deserto. inventar miragens. lapidar o diamante bruto do senso comum. deixar-se iludir pelo boca a boca. o amor é um produto falso contrabandeado do país vizinho?
TERMÔMETRO
um pássaro pousou na fratura exposta pensando estar num galho. o pássaro não faz ideia do sangue pisado por onde pisa. tampouco faz julgamento moral. o pássaro é um ser lírico. feito para entoar uma ária, que repete pela vida afora, procurando seduzir. fosse um ser político, não assobiava. passava a vida arquitetando artimanhas para nunca deixar a política, nunca perder o poder, nunca perder o poder de decretar o certo e o errado (para si). sabemos que poder e dinheiro gostam de andar juntos. há muitas maneiras de facilitar ou dificultar as coisas quando se quer ganhar dinheiro. há bem poucos homens públicos que não se guiam por dinheiro. Mujicas são raros. os pássaros cantam o que já nasceram predestinados a cantar. papagaios não cantam, no máximo repetem palavras ocas, divertidas. só os músicos poderiam cantar a política. mas estes andam muito deprimidos.
AGORA
agora na fruteira o mamão apodrece agora o céu escurece agora apedrejam agora a lua rachou agora na rua o cachorro sou eu agora não mais tenho mulher agora a tira da havaiana se rompeu agora perco o ônibus e a esperança agora roubaram minha graça agora as estrelas se afogam agora meus olhos são míopes agora no lixo a salamandra e minha Szymborska agora minha mãe morreu agora o mar me derruba agora a morte me tira para dançar agora a cerveja está quente agora o pneu furou agora a faca de legumes me corta agora a canção me faz chorar agora o mundo sempre injusto agora entraram em minha casa agora as milícias matam o diferente e o igual agora a mata me perde agora nos presídios os evangélicos são facção agora passo fome agora não tenho nome agora meu amigo se foi agora meu eu se parte agora o vinho avinagra agora o leite azeda e transborda agora a vida é um bordel agora não tem mais por quê agora perco o sono agora perdi coisas e peso agora perdi o medo agora quero voar agora busco calor agora busco o sol agora sou coletivo agora sou cidadão agora grito meu sonho agora sou multidão agora sou uma voz agora atravesso paisagens agora cruzo países agora sou flecha a caminho agora nunca termino
Sobre o autor: Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (organização de Adilson Miguel, Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (organização de Ricardo Vieira de Lima, Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007), Um certo Pena, de Henri Michaux (Pãooupães Editorial, 2017) e, de Paol Keineg, Histórias verídicas (Dobra, 2014), Dahut (Espectro Editorial, 2015) e Entre os porcos (Pãooupães Editorial, 2018). É autor dos livros de poesia Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007) e Caçambas (Editora 34, 2015). Publicou também os poemas infantojuvenis de Coisas daqui (Edições SM, 2007) e Tubarão vegano e outros elementos (Espectro Editorial, 2018).
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Comentários
O autor consegue trazer a aparência de algo que perdeu a vida em um guarda-chuva, que em suas palavras soa como um ser que já viveu, serviu alguém e foi abandonado!