Yukio Mishima - O marinheiro que perdeu as graças do mar
Apesar da condução da narrativa em terceira pessoa, Yukio Mishima (1925-1970) soube alternar com habilidade o ponto de vista dos três personagens principais a partir de suas diferentes perspectivas – e de como interpretam o mundo que os cerca – neste romance que lida com alguns dos temas recorrentes na extensa bibliografia do autor: paixão glória e morte. Fusako Kuroda é uma viúva, proprietária de uma refinada loja de artigos masculinos e que vive com seu filho único Noboru de 13 anos. Após cinco anos da morte do marido, Fusako conhece Ryuji Tsukazaki, oficial da marinha mercante, ao levar o filho, apaixonado por navios, em uma visita ao porto de Yokohama no cargueiro Rakuyo, no qual Ryuji estava embarcado, iniciando um relacionamento amoroso.
O livro tem início com a descoberta por Noboru de um furo no interior de uma grande cômoda, junto à parede divisória entre o seu quarto e o da mãe. Através deste furo o menino observa secretamente a intimidade do comportamento de Fusako Kuroda, inclusive durante a primeira noite que ela passa com Ryuji Tsukazaki. A perda da inocência de Noboru é compartilhada com um grupo de amigos da mesma idade que, liderados por um chefe cruel, discute ideias bizarras sobre a moral e as convenções da sociedade, a necessidade de preencher o vazio do mundo por meio de assassinatos: "Se deixarmos passar este momento, pelo resto da vida não poderemos mais roubar, matar ou praticar qualquer outro ato que testemunhe a liberdade humana."
"Tsukazaki desabotoou devagar os botões da camisa e em seguida despiu as roupas sem dificuldade. Apesar de regular em idade com a mãe de Noboru, tinha um corpo mais jovem e sólido do que um homem em terra, como se a matriz tivesse sido fundida no mar. Os ombros largos apresentavam o formato quadrangular do telhado de um templo; o peito, coberto por uma profusão de pelos, sobressaía com distinção; e por todo seu corpo surgiam músculos nodosos semelhantes à torcedura sólida das cordas de sisal, como se vestisse uma armadura de carne que pudesse despir quando quisesse. E Noboru se surpreendeu ao ver, rasgando os pelos profundos do baixo ventre, a triunfante torre lustrosa de um templo erguida, ereta. / Sob a luz débil e oblíqua, os pelos espalhavam sobre seu torso largo uma sombra delicada a cada respiração. O perigoso brilho dos olhos se encontrava fixo sobre a mulher que se despia. O reflexo da lua às suas costas imprimia uma linha áurica em seus ombros espadaúdos e dourava a veia grossa sobressaindo de seu pescoço. Era o verdadeiro ouro da carne produzido pela luminosidade do luar e do suor." (pp. 20-1)
Fusako Kuroda é uma mulher sofisticada e independente, simbolizando a associação dos padrões tradicionais japoneses de feminilidade com as influências da cultura ocidental no período de pós-guerra. No seu ponto de vista, apesar dos sentimentos, ela tem medo de comprometer a sua liberdade e posição social em um relacionamento com um marinheiro: "Sem que ela própria percebesse, sua fúria a colocava em uma posição incompatível com a repentina paixão avassaladora do final de verão do ano anterior. No fundo estava furiosa não tanto por causa de Ryuji, mas pela família sólida que criara desde a morte do marido, contituída por ela e pelo filho."
"Os dois viram-se mergulhados em sentimentos. Fusako anteviu no beijo apenas a dolorosa separação do dia subsequente. Acariciando a face, tocando as marcas acetinadas e tépidas do rosto escanhoado, aspirando o aroma de carne que exalava do selvagem peito masculino, Fusako sentiu seu coração se despedir de cada parte do corpo de Ryuji. Compreendeu que através do forte e arrebatado abraço ele procurava confirmar a real existência dela naquele momoento. / Para Ryuji, o beijo era a morte, a morte na paixão como sempre havia imaginado. A inexprimível doçura dos lábios da mulher, a infinita umidade da boca cujo vermelho podia perceber na escuridão mesmo de olhos cerrados o mar tépido de corais, a língua que se agitava sem repouso como uma alga marinha... No sombrio êxtase causado por tudo isso, havia algo subjacente ligado à morte. Estava totalmente ciente de que no dia seguinte se separariam e teve a sensação de que poderia morrer por ela. A morte o fascinava." (p. 80)
Já Ryuji Tsukazaki, o "marinheiro" do título, é um homem solitário que, antes de conhecer Fusako Kuroda, perseguia os ideais de uma morte gloriosa no mar: "Ignorava por completo o tipo de glória que desejava ou que lhe seria adequado. Sabia apenas haver um ponto luminoso na profunda escuridão do mundo que fora preparado só para ele e que um dia se aproximaria para iluminá-lo e a mais ninguém." Para Noboru, Ryuji inicialmente representava o auge da masculinidade japonesa, pois levava uma vida de aventuras. Contudo, esta perspectiva muda radicalmente quando Ryuji fica com Fusako e começa a tratar Noboru como seu filho.
Yukio Mishima é considerado, juntamente com Yasunari Kawabata (prêmio Nobel de 1968) e Junichiro Tanizaki, um dos grandes nomes da literatura japonesa moderna. O marinheiro que perdeu as graças do mar, lançado originalmente em 1963, ainda surpreende pela originalidade e complexidade, com um final surpreendente que é compatível com o estilo do autor.
"Noboru até então nunca recebera dos adultos um tratamento tão cordial, tampouco tinha visto demonstrarem diante dele tamanha hesitação. Parecia um rito particular dos adultos. Sabia o que iriam lhe dizer e isso o entediava. Do outro lado da mesa, Ryuji e a mãe constituíam uma visão espetacular, zelando por ele como se fosse um pequeno pássaro que pudesse se machucar e espantar com facilidade, vulnerável e delicado. Sobre um prato, tinham colocado esse passarinho de penugem ainda eriçada, frágil como se prestes a desmoronar, e agora pareciam pensar em uma maneira de devorar seu coração sem lhe causar mágoa. / Noboru não fazia objeção à imagem simpática de si criada por Ryuji e a mãe. Precisava se passar por vítima. [...] Noboru sabia que, ao mesmo tempo que era tratado com muito carinho, também era temido. Essa doce intimidação o inebriava. Ao dirigir a eles a frieza de seu coração, percebia-se um leve sorriso no canto de seus lábios. O sorriso minúsculo visto no rosto de um aluno que foi à aula sem ter feito o dever de casa, mas com o orgulho de alguém que se atira de um penhasco." (pp. 141-3)
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